São 11 faixas, apenas com voz e violão, que imprimem a memória afetiva do artista, marcada pela nostalgia de um tempo remoto. “Esse disco é um retrato fiel da minha alma”, diz Guinga ao Estadão. E essa memória se distribui entre as faixas – a começar pela que abre o disco, Sábia Negritude, homenagem à Mãe Tainha, cozinheira que lhe provocava medo quando pequeno e que hoje é reverenciada por sua sabedoria ancestral.
Já em Meu Pai, a segunda faixa, ele redescobre imagens da infância a partir de um breve perfil da figura paterna . Aliás, o verso “Habitará meu pai a encruza?” remete ao cruzamento de quatro ruas da Vila Valqueire, bairro da zona oeste do Rio, local visitado por Guinga até hoje, quando se recorda do pai, da infância e adolescência.
Em sua lista de homenagens, o músico presta devoção ainda a Sérgio Mendes, em Tangará, e na canção Casa Francisca faz referência ao famoso espaço musical paulista, conhecido pelos grandes shows lá apresentados.
Canção que dá nome ao disco, Zaboio remete à sua infância, em Jacarepaguá, então uma área rural e onde ele cuidava dos cavalos dos tios. O desgosto com tal função é retratado na letra da música.
Em seu trabalho ao longo da carreira, Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar (seu verdadeiro nome) sempre buscou o talento de compositores e o colorido de vozes de um time de craques, como Aldir Blanc, Nei Lopes, Chico Buarque e Paulo César Pinheiro, para citar alguns. E suas composições foram parar nos repertórios de Elis Regina, Leila Pinheiro, Michel Legrand, Sérgio Mendes, Clara Nunes e Ivan Lins, entre outros. A seguir, a entrevista.
As canções traduzem sua memória afetiva, algo muito pessoal. O isolamento social provocado pela pandemia contribuiu de alguma forma para que você fizesse essa viagem interior com mais força e emoção?
O isolamento sempre te leva a uma reflexão, sobre conviver mais consigo mesmo. Sempre fui um cara isolado, mais recluso. A minha vida se divide entre a família, a música e o esporte. Sempre gostei de praticar esporte. E é assim que vivo até hoje. É óbvio que a pandemia te obriga, impõe um isolamento, diferente do isolamento opcional. E muitas vezes a música me ajudou nesse momento. Não posso dizer que foi mais intenso.
Foi uma rotina muito parecida com a minha habitual. Talvez uma certa tristeza por esse momento possa transparecer mais em uma música ou em outra, mas não posso dizer que foi a pandemia que me fez compor assim.
Você disse, certa vez, que chegou à música graças à sua família, que sempre teve grande sensibilidade musical. E isso parece estar bem delineado em faixas como Meu Pai, não?
Sim, minha família sempre foi altamente musical. E, por uma ironia, eu era um dos menos musicais desse grupo. Foi meu tio quem me ensinou a tocar violão, e ele tinha mais jeito que eu. Também cantava muito melhor que eu, que era o pior da família (risos). E não sei se melhorei muito nesse aspecto (risos). Todos cantavam maravilhosamente bem, meus tios Claudio e Marco Aurélio, minha mãe, Nalda, e minha tia Consuelo tinham vozes lindas. Meu tio Danilo era um barítono de timbre lindíssimo. Todos exibiam uma formação musical muito sólida – e transitavam bem entre a seresta e a música americana. Tio Danilo, o mais velho, era um aficionado do jazz, tinha uma discoteca imensa. Foi por intermédio dele que tive a entrada nesse gênero musical. E, de outra parte da família, incluindo meus pais, foram a seresta e as canções no geral. Meu pai me apresentou à música clássica, que ele adorava assim como ópera italiana e grandes compositores clássicos, como Beethoven, Chopin, Bach. Sempre fomos uma família altamente musical – não uma família culta, com muitos estudos, mas com uma imensa musicalidade.
Em outro momento, você disse também que já sofreu por não realizar, como artista, algo que te emocionasse profundamente. Como foi, então, o processo de criar seu primeiro disco integralmente com letra e música suas?
Esse disco é algo novo na minha carreira, algo concretamente materializado. Mas essa é a maneira como sempre me relacionei com a música. No meu isolamento, na minha solidão, somos apenas eu, meu violão e a música. (A produtora) Fernanda Vogas, que admira meu trabalho, idealizou e produziu esse disco. Ela queria muito um disco 100% Guinga, letra e música. A produtora dela, a Vogas Produções, criou até um selo fonográfico para lançar o Zaboio. Esse disco traduz exatamente isso, é um retrato fiel do que sou, sem retoque, com os defeitos e as qualidades. Por isso, tenho um apego muito particular por esse disco, que é muito importante na minha vida, um retrato fiel da minha alma.
Mônica Salmaso participa de duas faixas do disco – em termos musicais, como você observa a fluidez do diálogo entre vocês?
O diálogo entre mim e a Mônica é simplesmente o seguinte: ela canta e eu choro (risos). Posso resumir nessa frase.
Sérgio Mendes é homenageado na faixa Tangará – o que mais admira na musicalidade dele?
Sérgio Mendes entrou na minha vida com sua incursão na bossa nova. E, principalmente, pelo disco Sérgio Mendes & Bossa Rio, com arranjos de Tom Jobim. É um disco que representa um marco na música instrumental brasileira. Uma obra-prima feita há quase 60 anos e que ainda hoje é moderno e lindo. Ouvir este disco produz o mesmo impacto de anos atrás, de quando ouvi nos meus 15, 16 anos de idade. E eu não sabia que iria me tornar amigo do meu ídolo – foi em 1990, por intermédio de Ivan Lins, que me colocou no caminho de Sergio Mendes. Desde então, nossa convivência é intensa. Sérgio sempre grava minhas composições. Quando ele está no Brasil, nossas famílias mantêm contato e, quando vou aos EUA, a gente acaba se encontrando. Minha homenagem, com Tangará, é ao homem, ao amigo, ao ser humano, ao grande artista. Sérgio Mendes é o grande divulgador da música brasileira pelo mundo. Um homem que estabeleceu seu voo. Como diz na música: “Tangará diz que o tempo passa voando, voando / Que enquanto o tempo passa ele vai cantando, cantando / Tangará, adivinha o meu desejo / De andar pelo mundo céu afora / E saber que voar é um lampejo / Criar asas no sonho sertanejo / E alcançar a cidade e ir embora…”. É isso que mais ou menos aconteceu com Sérgio. Mas ele sempre volta!
Como foi a experiência de se apresentar em lives, durante a pandemia? Houve algum aprendizado nessa forma de fazer show?
Fiz poucas lives. Não tenho muita experiência. Mas foi um meio de se comunicar e se manifestar. Quando não há remédio, remediado está. Ou era a live ou nada. Em 2020, tive a oportunidade de fazer uma série de lives no Centro Cultural Branco do Brasil, no projeto Guinga e as Vozes Femininas, em homenagem aos meus 70 anos. Sou muito agradecido às lives. Mas é óbvio que a maioria dos artistas, durante esse período, ficou sem trabalhar e precisando sobreviver. A necessidade é a volta dos trabalhos presenciais. A live é um lenitivo artístico que, por vezes, ajuda na sobrevivência. Mas é algo muito pontual. O artista não consegue sobreviver fazendo uma live hoje e outra daqui a quatro meses. Ele precisa voltar a trabalhar. E o Brasil precisa voltar os olhos para os artistas com mais respeito e sensibilidade.
Anos atrás, Chico Buarque declarou: “Qualquer um que se interesse por música brasileira vai passar por Guinga”. Aos 71 anos e festejado por seus pares, nacionais e internacionais, que tipo de tranquilidade isso te traz?
Isso me dá a sensação de dever cumprido, de que tenho sido honesto com o dom que recebi da música. E é preciso tratá-la com respeito, honestidade e paixão. Ela transmite o meu sentimento, minha relação com a minha família, a relação com tudo que amo. E ouvir uma frase dessa do Chico Buarque, um dos meus grandes ídolos nessa vida, me gera até mais responsabilidade. E espero seguir assim até o fim da caminhada pela Terra.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Comentários estão fechados.