Paulo Argollo
Era inverno e a neve cobria a cidade de Berlim. Pelas ruas vazias e sem cor do bairro de Neukölln uma jovem de olhos azuis caminhava lentamente, rumo ao minúsculo apartamento que dividia com o namorado, e que, naquele momento, abrigava a cúpula do grupo Juventude Comunista. Às vésperas de completar 20 anos de idade, aquela jovem acabara de sair da prisão de Moabit. Havia sido presa meses antes por participar de manifestações contra a extrema direita e o partido nazista que crescia a passos largos na Alemanha. Ela havia sido presa junto com seu namorado, um jovem professor chamado Otto Braun. Ela foi solta em janeiro de 1928, mas Otto permaneceu preso e seria julgado, e possivelmente condenado a morte, por alta traição contra a pátria. Enquanto ia para seu apartamento, ela já planejava uma maneira de libertar seu namorado.
A prisão de Moabit contava com um pequeno auditório onde interrogatórios e, esporadicamente, julgamentos, eram realizados. Na manhã de 11 de abril de 1928 Otto Braun foi levado a este auditório para ser interrogado pelo secretário nacional de justiça, como era de praxe acontecer antes de julgamentos importantes. Na sala estavam apenas o secretário de justiça, um escrivão e, sentados na plateia, um grupo de estudantes de direito que acompanhariam o interrogatório. Às nove horas da manhã entra na sala um soldado segurando pelo braço o professor Otto Braun algemado. Neste mesmo instante, um vulto sorrateiramente se levanta da plateia e se posiciona atrás do soldado. Quando o soldado respira para anunciar em voz alta a presença do preso, sente algo gelado encostar em sua nuca. Era uma pistola. E quem a segurava era a garota de olhos azuis que ordena com voz firme: “Solte o preso!” Neste instante, o grupo de jovens abandonam livros e cadernos e empunham pistolas tiradas dos bolsos dos casacos. Em minuto a situação é dominado por eles. Por volta de nove e quinze da manhã, Otto Braun já estava na companhia de sua namorada dentro de uma van, se dirigindo para casa. No dia seguinte todos os jornais de Berlim anunciavam a ousada invasão de Moabit e libertação de um preso por alta traição da pátria. E em todas as matérias constava o nome da jovem que encabeçara a ação: Olga Benario!
Concordando ou não com a ideologia comunista, uma coisa é inegável: A Olga Benario foi uma mulher incrível. Dona de uma biografia repleta de coragem, ousadia, inteligência, amor e aventura. Mas também com grandes porções de sofrimento e injustiça. Olga nasceu em 12 de fevereiro de 1908 em Munique, na Alemanha. Tendo origem numa família de classe média alta, em que seu pai era um advogado letrado e trabalhador, assim que aprendeu a ler, Olga começou a se interessar por política e economia, se compadecendo dos trabalhadores pobres, que era explorados e procuravam o pai dela para ajudá-los a lutar por seus direitos. Aos 16 anos ela já participava de manifestações em Munique junto ao recém criado partido comunista alemão. Seu envolvimento com o comunismo gerou muitos conflitos dentro de casa e Olga decide se mudar para Berlim com seu novo namorado, o professor Otto Braun. Em Berlim o casal de dedica completamente ao grupo Juventude Comunista organizando manifestações, imprimindo panfletos e promovendo palestras e reuniões. É em uma dessas manifestações, no início do ano de 1927 que o casal é preso em Moabit.
Na primavera de 1928, o relacionamento de Olga e Otto já começa a se desgastar. Ao mesmo tempo, o rosto de Olga estampa cartazes e jornais como uma das criminosas mais procuradas da Alemanha. É quando ela se separa de Otto e foge para a Rússia. A viagem é longa e tensa. Ela viaja com passaporte falso e precisa trocar de trem mais de quatro vezes ao longo do caminho para não ser capturada. Já em Moscou, ela é muito bem vinda e logo recebe alto treinamento do Kremlim sobre implantação de células do partido em outros países e também é treinada para guerrilha urbana. Após seis anos em Moscou ela recebe uma missão muito importante: acompanhar um camarada revolucionário para o Brasil e organizar uma célula do partido e, em seguida, promover a tomada do poder. O homem que ela acompanharia era o já lendário Luis Carlos Prestes, que estava exilado e voltava clandestinamente para o Brasil.
Entre o primeiro contato que tiveram em Moscou e a viagem para o Brasil, Olga e Prestes se apaixonaram e começaram uma história de amor virtuosa. Em março de 1935 o casal desembarca secretamente no Brasil. Prestes e Olga comandam a organização da Aliança Nacional Libertadora, que a princípio se apresenta como uma organização de centro-esquerda, mas que depois se revela um grupo com raízes na Internacional Comunista e arquitetada por Prestes. Não vem ao caso, e eu já escrevi aqui um tempo atrás sobre a brancaleônica e desastrada Intentona Comunista de novembro de 1935. Então basta citar que rolou a Intentona Comunista. Das prisões feitas, sob tortura, um dos prisioneiros acabou entregando o esconderijo de Prestes e Olga, que foram presos em março de 1936. É quando começa um dos episódios mais repugnantes da era Vargas.
Ao ser presa, Olga anunciou aos policiais e à imprensa que cobria os acontecimentos que estava grávida. Ficou alguns meses na prisão, até que soube que seria deportada para seu país de origem, a Alemanha. Acontece que, além de estar grávida e de ser comunista, Olga era judia. Em 1936 Hitler já estava no poder e a perseguição aos judeus já era praxe na Alemanha. Além disso, alguns campos de concentração já estavam em plena atividade, ainda que não com o objetivo explícito do extermínio, como aconteceria durante a Segunda Guerra. Mas já se sabia que o destino de judeus e comunistas, bem como ciganos, homossexuais e negros, era o trabalho escravo nesses campos, de onde já se sabia que prisioneiro nenhum saía vivo. Além disso tudo, a extradição de Olga era inconstitucional, pois de acordo com a lei brasileira, uma vez que ela carregava no ventre uma criança gerada no Brasil, ela não poderia ser deportada. Mesmo assim, de maneira sórdida e cruel o governo brasileiro a colocou num navio com destino a Hamburgo, onde ela foi entregue nas mãos da Gestapo. Olga chegou em Hamburgo no dia 18 de outubro de 1936. Foi encarcerada no presídio de Berminstrasse, em Berlim, onde sua filha, batizada de Anita Leocadia Prestes, nasceu, no dia 27 de novembro do mesmo ano.
Dona Leocádia e Lígia Prestes, mãe e irmã de Luis Carlos Prestes, organizaram inúmeras manifestações que varreram a Europa clamando pela liberdade de Olga. Apesar de conseguir pressionar muito o governo alemão, elas conseguiram apenas a guara da criança. Olga continuou presa. Já sem a filha, no ano seguinte, ela foi enviada para o campo de concentração de Lichtenburg. Mas ficou pouco tempo. Logo seguiu para Ravensbrück, um capo de concentração bem maior e com a presença do infame médico alemão Karl Gebhardt, um dos primeiros a promover experiências macabras em seres humanos nos campos de concentração nazistas. Olga era uma mulher forte e muito corajosa. No tempo e que ficou em Ravensbrück, mobilizou toda a ala e prisioneiras organizando aulas de ginástica, de história, política e incentivando o encorajamento e solidariedade entre elas. Atividades estas que chegaram a constar em muitos relatórios dos nazistas, pois eram reprimidas, mas sempre voltavam. Por fim, em 1942, com a Segunda Guerra já em curso, Olga é transferida para Bernburg, este sim um campo destinado exclusivamente ao extermínio. Olga Benario Prestes foi executada numa câmara de gás em abril de 1942. Mas sua morte só foi noticiada à família em julho de 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial.
No mês da mulher, com o dia 8 de março chegando, histórias como a de Olga Benario devem ser amplamente divulgadas. Ainda que tenha um final trágico, a trajetória de Olga é inspiradora e reflete a essência poderosa e inquebrável de toda mulher. Não importa se você gosta ou detesta o comunismo. A vida e a história de Olga Benario Prestes, uma mulher que se destacou em tudo o que fez desde menina, numa época em que o mundo todo era absurdamente machista, é digna de reverência e respeito.
HOJE EU RECOMENDO
Livro: Olga
Autor: Fernando Morais
Editora: Companhia das Letras
Ano de lançamento: 1985
Uma biografia brilhante que conta em detalhes a via de Olga Benario. Leitura essencial!