Não por acaso, um dos seus integrantes relembra que a ‘Bíblia’ era o livro Balanço da Bossa (Editora Perspectiva), coletânea de artigos organizada por Augusto de Campos em 1968. Assinados por gente como o próprio Augusto, Júlio Medaglia, Gilberto Mendes, Brasil Rocha Brito, etc., os textos estudam a evolução da MPB, do samba tradicional à bossa nova, e, desta, à Tropicália. Uma expressão permeia o livro e lhe dá sentido: “linha evolutiva da MPB”, arte em mutação, incorporando o passado e gerando sínteses para o futuro.
É um pouco o que deseja fazer o Rumo, já nos anos 1970. As entrevistas com os músicos dão conta dessa busca permanente da invenção, que redunda não apenas em releitura de clássicos da música brasileira, como Ataulfo Alves e Noel Rosa, mas em composições próprias. Às vezes envereda por uma espécie de canto falado, de grande originalidade, em diálogo talvez longínquo com o Pierrot Lunaire, de Arnold Schoenberg.
O grupo Rumo, que apostava também no humor e numa poética inovadora e rigorosa em suas letras, oficiava no Teatro Lira Paulistana, na Praça Benedito Calixto, e dirigia-se às plateias cults daqueles anos um tanto soturnos da história brasileira. Era composto por jovens da cidade, muitos da USP, como Luiz Tatit, Ná Ozzetti, Hélio Ziskind, Paulo Tatit, Pedro Mourão, Akira Ueno, Gal Oppido, Zecarlos Ribeiro, Geraldo Leite, Ricardo Breim e Fábio Tagliaferri. Ciça Tuccori morreu em 2003. Outros passaram pelo grupo, como o ensaísta, pianista, compositor e professor José Miguel Wisnik.
Aqui e ali, na reavaliação dos músicos sobre o passado, feita agora a partir do presente, ouvem-se queixas sobre a falta de divulgação nas rádios e TVs. A crítica os glorificava mas, como diz um deles, “jornal não toca música”.
Essa circunstância os manteve num semiamadorismo talvez desconfortável, mas bastante profícuo. Todos seus integrantes tinham outras profissões “para pagar os boletos”, como se diz hoje. E, portanto, faziam a música que bem entendiam, sem concessões a modismos, facilidades ou outras imposições comerciais.
Mesmo assim, foram bem longe. Conseguiram inesperado sucesso no Rio de Janeiro, mais do que em São Paulo. Mantinham plateias fiéis. O grupo durou nada menos que 17 anos contínuos. Soube acabar, na consciência rara de que tudo é provisório nesta vida, mesmo conjuntos musicais bem-sucedidos. Usou humor refinado até para se dissolver, num emocionante show de despedida. A música final, interpretada por Ná Ozzetti, é uma joia de invenção e sensibilidade filosófica bem-humorada sobre o correr do tempo.
De resto, o grupo terminou e voltou várias vezes, renascendo como fênix, fazendo shows, gravando e depois retornando ao silêncio. Marcou a história da música brasileira.
A sacada certeira do documentário é fazer-se original para abordar um conjunto inovador. Um filme convencional não daria o mesmo resultado. Desse modo, o uso intenso de técnicas de animação traz frescor ao trabalho. Em especial na primeira parte, os personagens são apresentados, em ambiente real, em suas casas ou estúdios. Mas suas imagens são de avatares animados. Esse recurso entra em consonância com um grupo que alia o erudito ao pop sem qualquer cerimônia. A irreverência dos seus integrantes ganha, deste modo, contrapartida cinematográfica.
No mais, é um filme banhado em muita música, o que, por paradoxo, não é coisa muito frequente em documentários musicais. A opção em trazer doses generosas da música do Rumo para a tela beneficia não apenas os que a conhecem – e dela têm saudades – como aqueles, mais jovens, que estão sendo agora apresentados a ela.
Vale a pena assistir ao documentário e voltar ao repertório do Rumo, que, apesar de outsider, gravou vários discos e hoje encontra-se disponível nos serviços de streaming.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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