Dias depois, leu uma crítica no jornal em que a autora dizia que tinha corado ao ver aquele quadro na parede. E achou interessante que mais de um século depois aquilo pudesse acontecer. Passado mais de um ano, Barnes estava brincando com a ideia de escrever ficções sobre médicos que morreram de forma trágica e se deparou de novo com Pozzi, que teve um fim assim. O escritor descobriu que ele foi uma grande figura na Paris do fim do século 19, amigo de grandes escritores, amante da musa Sarah Bernhardt e presente em momentos significativos da belle époque. Barnes, profundo conhecedor do período, desconhecia as informações – e isso o levou cada vez mais fundo em sua investigação, que incluiu até a descoberta de uma visita ao Instituto Butantan, em São Paulo, em 1910.
“Pozzi foi uma presença poderosa que não deixou muitos rastros, e isso é muito interessante para um escritor. Quanto mais eu lia, mais eu percebia que se tratava de um homem lúcido vivendo tempos insanos. Um homem da ciência vivendo a belle époque, um pioneiro, e alguém que dizia que o chauvinismo era uma das piores formas de ignorância. Muito da sua atitude é oportuna hoje, visto que o mundo está cada dia mais louco”, disse Julian Barnes em rara entrevista, concedida por videochamada, ao Estadão.
Autor de obras consagradas como O Sentido de Um Fim, vencedor do Booker Prize, e de Altos Voos e Quedas Livres, que escreveu depois da morte da mulher, quando também se afastou da vida pública, Julian Barnes é considerado um dos escritores mais versáteis da literatura contemporânea e dono de um dos textos mais elegantes – seja na sua ficção ou em sua não ficção, que é o caso de O Homem do Casaco Vermelho, a biografia de Jean Pozzi que ele lançou em 2019 e que chega agora ao Brasil pela Rocco. Confira trechos da conversa sobre o livro, que conta com personagens como Oscar Wilde e Alfred Dreyfus, e sobre o mundo, a pandemia, memória e luto.
Este não é só um livro sobre um médico, mas também sobre um outro tempo. Como foi para o senhor passar um período na Paris da belle époque enquanto a Inglaterra encarava o Brexit?
Nunca penso nos meus livros como uma fuga. Eles podem ser uma fuga para os leitores. Eles são apenas o que quero fazer apaixonadamente naquele momento específico. Mas enquanto investigava a história e escrevia sobre Pozzi, eu fiz alguns paralelos com a nossa época – ou um paralelo com o modo como devemos nos comportar no nosso tempo. Ele era um verdadeiro cosmopolita, tinha amigos no mundo todo e era um grande anglófilo. Nós, na Grã-Bretanha, estávamos vivendo um daqueles períodos de ultraje moral e social quando decidimos que não estaríamos com os outros e que queríamos ficar na nossa própria ilha porque é aqui que somos mais felizes. Isso, claro, é uma fantasia. Sempre foi uma fantasia. Mas o desastroso Brexit aconteceu, e Pozzi foi alguém que, apesar da tensão que havia entre França e Inglaterra em sua época, manteve seus contatos na Inglaterra, na Alemanha, viajou para a Argentina e para o Brasil. Ele foi um cosmopolita em uma época em que os perigos do provincianismo político e nacional estavam se tornando mais fortes.
O mundo era diferente no final do século 19 e em 2019, quando o livro foi publicado. Como é para o senhor testemunhar essa reviravolta que estamos vivendo?
É tudo muito alarmante. E é muito alarmante em muitos aspectos. A Olimpíada estava acontecendo e pensamos “que bom, posso ver os jogos por duas semanas e não pensar na situação do mundo”. Mas os problemas do mundo não se resolvem enquanto assistimos à Olimpíada. Eu não tenho filhos, mas outro dia estava conversando com um amigo que disse que não tinha ideia de como o mundo será para seus netos. Uma das crises mais óbvias é a mudança climática, e uma vez que você tenta entender isso e imaginar as consequências, você compreende por que as pessoas estão achando que ela não está acontecendo de verdade ou estão vendo a Olimpíada. Esse é um lado da história, e a questão política é outro efeito. Há sempre uma preocupação maçante de que algum erro ou alguma decisão mal-intencionada poderia se tornar uma catástrofe para o mundo. Já na Idade Média havia pessoas que esperavam que o mundo fosse acabar e que Deus as puniria, mataria ou as torturaria no inferno. Temos esses momentos de esperança, como quando Trump não foi reeleito. Mas depois vemos o número de votos que ele teve e é deprimente. Esta é uma sociedade que está completamente dividida. E tem também a ascensão de líderes populistas no meu continente, e também no seu. Populismo e nacionalismo combinados com anticiência, antivacina, mitos de eleições roubadas e coisas desse nível não resulta numa boa mistura. Há momentos em que todas as pessoas responsáveis pelo mundo parecem iludidas. É aí que temos que pensar que também há no mundo pessoas como o dr. Pozzi, que veem as coisas como elas são. Devemos todos ser como Pozzi. Esse é o meu conselho.
Por que acha que ele foi esquecido, apesar do que fez pela ciência e pela saúde da mulher?
Essa é uma das razões para eu ter escrito o livro. Eu achava que essas pessoas deveriam ser lembradas e celebradas. Você está na área científica, promove avanços, faz o bem e então vem uma nova geração. A Ginecologia, hoje, não é como nos tempos de Pozzi. As coisas vão evoluindo e a menos que você seja extremamente famoso ou alguém como Newton será provavelmente esquecido. Embora ele seja um personagem extravagante, ele também era muito discreto. Ele foi um senador, o primeiro professor de Ginecologia da França. Mas também tinha algo meio secreto sobre ele. Ninguém com quem eu conversei já tinha ouvido falar sobre ele e ele estava em todo lugar em sua época. Uma pessoa perguntou se ele tinha alguma coisa a ver com a poeta Catherine Pozzi. Ele foi esquecido e sua filha é lembrada – lembrada porque teve um caso com Paul Valéry.
O que mais aprendeu com seu personagem?
Uma das lições de Pozzi é que você deve olhar ao redor do mundo e que, ao fazer isso, vai descobrir lugares onde coisas podem ser feitas de um jeito melhor do que em seu país. Essa é uma lição simples que todos nós, cidadãos, devemos aprender. A Grã-Bretanha tem um histórico de pensar que é uma nação moralmente superior. Os Estados Unidos acham isso agora, assim como muitos outros países. “Não há lugar nenhum como a casa da gente.” Os países estão muito lentos na tarefa de reexaminar o seu passado. A Grã-Bretanha, que sempre teve uma visão muito rígida de sua história, está começando a reexaminar esse passado, principalmente no que diz respeito ao seu papel na escravidão, e acho que isso é um desses lampejos de otimismo. Muito da riqueza do país veio do tráfico de pessoas e é muito bom que estejamos percebendo isso agora. Claro que o partido conservador e os tradicionalistas ficam dizendo para pararem de diminuir a Grã-Bretanha, para pararem de minar a nação, e que as coisas eram daquele jeito nos velhos tempos e que agora são novos tempos. Não! Só teremos novos tempos se investigarmos os velhos tempos. Sou um pessimista, mas um pessimista que de vez em quando encontra razões para se animar.
O que interessa ao senhor explorar em sua obra? O que busca ao escrever ficção ou não ficção?
Escrevo sobre o mundo como eu o vejo e sobre como ele era no passado. Escrevo sobre amor, arte e história. Sobre política. E escrevo isso nos dois gêneros. Eu não acho que meus interesses quando faço ficção sejam necessariamente diferentes quando faço não ficção.
A memória e o luto também são questões importantes no seu trabalho.
Isso é verdade. Amor e luto, os dois lados de uma mesma coisa. Escrevi sobre isso em Altos Voos e Quedas Livres, dois anos depois que minha mulher morreu. E eu sempre me interessei pela memória e quão confiável ela é, e em como ela muda. O efeito do tempo na memória. O efeito da memória no tempo. Meu irmão mais velho é filósofo e quando eu estava escrevendo Nada a Temer, que era em parte sobre morte e em parte sobre minha família, fiz muitas perguntas sobre fatos da nossa vida. Ele me disse que, se nossas respostas fossem diferentes, eu deveria ficar com a minha resposta e falou: “Você provavelmente acredita mais em memória do que eu; para mim, a memória é muito mais próxima da imaginação”. Eu tinha uma ideia mais tradicional do que era a memória, algo como um cofre, ou um lugar numa estação de trem onde você deixa a sua bagagem e volta quando precisa de algo, abre com uma chave e tira de lá. Agora, 13 anos depois dessa conversa, estou mais convencido da falibilidade da memória e, como ele diz, acho que ela é mais próxima de um ato de imaginação do que de um registro factual.
Ainda sobre essa questão do luto. Vivemos uma época de luto coletivo ao mesmo tempo que somos privados de nos despedir daqueles que amamos e perderam a vida na pandemia. O que esta pandemia vai nos deixar em termos de percepção e compreensão do luto?
Não gosto de dar conselhos às pessoas, mas o que posso dizer é que escrevi sobre minha experiência de luto – e elaborar um luto não é algo que alguém possa fazer por você. Você tem de fazer isso sozinho. E não vai ter sucesso, mas vai conseguir dominar o luto encarando o luto e sua verdade. Funciona. É um trabalho duro, e cansativo. E é mais difícil quando a pessoa que morre não teve uma longa doença ou não é muito velha. Isso é o que é mais terrível com relação a essa pandemia: o quão rápido tudo acontece e como parece completamente aleatório – essa pessoa vai morrer e essa vai escapar. A ideia e a imagem das pessoas que não podem estar junto de quem amam no final é terrível. Isso torna tudo pior. E há algo que ainda não encaramos, que é a covid longa. Pessoas sentirão os efeitos por muito tempo ou pela vida toda, não sabemos. Pessoas de 20 anos estão pegando, estão confinadas em casa, sem energia, com cansaço mental, e não vão se recuperar por muito tempo. Há um pesar por essas pessoas também porque pode não haver uma saída para elas. Acreditamos que só existe vida ou morte e não pensamos que há uma morte contínua em vida.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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