Afinal, a trama criada por Dias Gomes trazia uma sátira atemporal à exploração política e comercial da fé popular, na cidade fictícia de Asa Branca. Lá, os moradores vivem em função dos supostos milagres de Roque Santeiro (José Wilker), um coroinha e artesão de santos de barro que teria morrido como mártir ao defender a cidade do bandido Navalhada (Oswaldo Loureiro).
O falso santo, porém, reaparece em carne e osso alguns anos depois, ameaçando o poder e a riqueza das autoridades locais. Entre os que se sentem ameaçados com a volta de Roque estão o conservador padre Hipólito (Paulo Gracindo), o prefeito Florindo Abelha (Ary Fontoura), o comerciante Zé das Medalhas (Armando Bógus) e o temido fazendeiro Sinhozinho Malta (Lima Duarte), amante da pretensa viúva do santo, a fogosa Porcina (Regina Duarte).
O personagem Roque Santeiro surgiu pela primeira vez em uma peça de teatro, O Berço do Herói, que estrearia em 1965 se não fosse proibida pela censura do governo militar, incomodado com a crítica explicitamente humanista à forma como se constroem mitos heroicos baseados em fatos reais – o texto trata da idolatria que uma pequena cidade dedica ao cabo Jorge, aclamado por ter morrido com bravura na 2.ª Guerra quando, na verdade, ele fugiu do front depois de atacado por uma crise nervosa.
Dez anos depois, em 1975, já consagrado como autor de telenovelas, Dias Gomes disfarçadamente adaptou a própria peça e a transformou em Roque Santeiro, cujo primeiro capítulo nem sequer foi exibido: naquele 27 de agosto, a Globo recebeu ofício do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), censurando a novela – o governo percebeu que a peça era a origem do folhetim. Trinta e seis capítulos já tinham sido gravados com Lima Duarte no papel de Sinhozinho Malta, amante de Porcina (Betty Faria), viúva do milagreiro Roque (Francisco Cuoco), que volta à cidade de Asa Branca 17 anos depois de ser canonizado como um herói morto.
Não adiantou nem um feroz editorial escrito por Roberto Marinho, então presidente das Organizações Globo, que foi lido no Jornal Nacional. Finalmente, em 1985, já na fase de abertura política, a novela foi exibida, agora com Regina Duarte como Porcina e José Wilker no papel de
Roque Santeiro. Um sucesso retumbante, cravando em média 75% da audiência da TV. Mesmo assim, Gomes e Aguinaldo Silva, que o auxiliava na escrita dos capítulos, continuaram sofrendo ação da censura, especialmente as menções à teologia da libertação, movimento católico influenciado pelo marxismo.
“Roque Santeiro foi um sucesso e foi um divisor de águas também”, relembra Lima Duarte. “Roque Santeiro sempre estava na pauta de todas as conversas, era uma novela que todos nós adorávamos e ficou 10 anos proibida. Só eu que era remanescente do elenco original, Sinhozinho. Mas foi muito feliz porque teve o maravilhoso Zé Wilker fazendo o Roque Santeiro e a Porcina, com a Regina Duarte maravilhosa.”
Segundo o veterano ator, a novela envolveu o telespectador no subtexto. “Falamos de você, do nosso País. Estamos contando histórias que um dia, um momento, aconteceram com você. Por isso as pessoas se reconhecem. Quando pega fundo no coração dele, o espectador se identifica. Um dia, me disseram que gostam quando eu entro na novela porque sempre dão risada. Você só ri do que você concorda, você não ri do que discorda. A trama era interessantíssima, falava de um país que se tornava grande, livre, importante. Tinha padres, freiras, heróis, prostitutas, bandidos, ladrões e era um microcosmos do Brasil.”
Além de artistas já consagrados, a novela abriu espaço também para iniciantes que, com o tempo, também se tornaram consagrados. É o caso de Claudia Raia, que viveu Ninon, uma das dançarinas da boate local, a Sexus. Inicialmente, ela não teria falas, mas o carisma da atriz se impôs e Claudia ganhou mais destaque na trama.
“Foi a minha primeira novela, era uma personagem pequena, mas tudo que eu podia mostrar do meu trabalho eu mostrava”, relembra Claudia. “Tem uma história maravilhosa: havia uma cena que eu dividia com a Regina Duarte. Era uma fala só, mas eu ensaiei aquela fala como se eu fosse a protagonista da novela. Chegamos no set para gravar e a Regina, que tinha muitas falas, passou pela minha deixa, emendou tudo e aí me cortou sem querer. Eu parei e pedi para voltar porque eu tinha ensaiado três semanas para falar aquela fala porque era uma fala só (risos). Mas ela foi muito querida, a gente refez a cena, falei e deu tudo certo. Imagina se eu podia perder aquela oportunidade? Jamais!”
Assista a abertura da novela ‘Roque Santeiro’:
Claudia lembra com carinho da atuação de José Wilker, que morreu em 2014. “Ele dominava o personagem de uma maneira muito segura”, comenta a atriz, que vê ousadia no texto da novela. “O meu núcleo, por exemplo, era quase uma afronta. O texto do Dias Gomes trazia também elementos fantásticos, como a história do lobisomem, que faziam com que aquela história, que era uma grande crítica sociopolítica, fosse muitas vezes interpretada de maneira alegórica, lúdica. Se a gente parar para pensar, ainda é um enredo muito atual.”
Para atriz, o humor era o melhor caminho para enfrentar temas delicados. “O bonito do humor é que ele é essa linguagem que nos permite abordar sobre tudo, que nos permite fazer críticas e propor reflexões. Isso continua assim até hoje. Muito humoristas continuam usando o humor para fazer essas críticas todas. Para mim, o humor é uma grande ferramenta de subversão e vai continuar sendo assim sempre. É um grande ato político.”
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