Para quem não é um ‘millennial’ e ainda tem boa memória, o nome de Kissinger geralmente é confundido com o trocadilho infame de “Henry Killinger”. Considerado pela esquerda moderada como um “criminoso de guerra” e pela direita razoável como um “pensador refinado e um diplomata brilhante” (enquanto a direita nacionalista o chama de “comunista rendido” e a esquerda radical o ofende com um “infiltrado imperialista”), o autor do colossal Diplomacia (1994) – um tomo de mais de mil páginas que praticamente explica o surgimento da Nova Ordem Mundial que conhecíamos antes da peste do coronavírus – ganhou essa reputação graças ao fato de que foi, entre 1968 e 1975, o Secretário de Estado e Consultor de Segurança de ninguém menos que Richard Nixon e do sucessor deste último após o escândalo Watergate, Gerald Ford.
Nesses anos, foi obrigado a lidar com assuntos mais do que urgentes como a Guerra Fria, o poder nuclear da União Soviética e – last but not least – o conflito no Vietnã. Como se esses problemas não fossem suficientes, ele também teve de administrar (segundo alguns, “ordenar” é a palavra exata) a interferência à soberania nacional de países latino-americanos, como o Chile em 1974 (com a queda de Salvador Allende) e o financiamento da “Guerra Suja” ocorrida em uma Argentina dominada pelo exército militar.
Por causa deste extenso currículo, Kissinger se tornou um personagem digno de biografias e tratados que tentam analisá-lo na sua ambiguidade (um termo muito importante para entender corretamente suas ações, de acordo com o próprio). Temos todo um mercado editorial sobre esse homem, desde o polêmico The Trial of Henry Kissinger (2001), do falecido Christopher Hitchens, passando pela primeira parte da biografia de Niall Ferguson, Kissinger 1923-1968: The Idealist (2015), até chegar ao produto mais recente – o complexo e instigante The Inevitability of Tragedy: Henry Kissinger and His World, do editor da prestigiada New York Times Book Review, Barry Gewen.
Na sua estreia literária, ocorrida após trinta anos retocando os textos dos outros, Gewen provocou um certo rebuliço ideológico entre seus pares. Notório por ser um progressista de quatro costados (afinal, ninguém trabalha por acaso no New York Times), ele os surpreendeu por escrever um livro que tentava compreender um sujeito que, para este “círculo dos sábios”, era mais do que alguém nefasto. Era o próprio mal encarnado.
Gewen se recusa a ir por essa vereda – mas não pelos motivos sorrateiros atribuídos a ele. Como o próprio subtítulo indica, não se trata de uma biografia, e sim de um ensaio que reflete sobre o “mundo” onde Kissinger nasceu e se formou: a Alemanha entre as duas guerras mundiais, mais precisamente a Alemanha de Weimar que depois seria a de Adolf Hitler. A partir daí, o que temos é uma excelente síntese da história das ideias políticas do século 20, centralizadas em três figuras essenciais para a educação do futuro diplomata do governo Nixon: Leo Strauss, Hannah Arendt e Hans Morgenthau.
Mesmo tendo pouco contato pessoal com os dois primeiros nomes, Kissinger foi um dos alunos favoritos do terceiro, hoje considerado o papa do “realismo político”. Apesar de ser divulgado por seus apoiadores como uma novidade do século 20, esse pensamento que fez fama na cátedra das Relações Internacionais é apenas uma variação do velho e bom Leviatã (1651), de Thomas Hobbes. Porém, há uma diferença: se, com Hobbes, a reflexão sobre o poder tinha como base o trauma das guerras civis inglesas do século 17, Morgenthau e Kissinger (junto a Strauss e Arendt) perceberam o problema sobre quem comanda de fato o Estado sob as sombras totalitárias do nazismo e do comunismo.
Para ambos, o início dessas moléstias coletivas não foram as benesses da democracia liberal – e sim justamente os seus excessos. Daí a desconfiança suprema em relação a este modelo de governo, justamente para preservá-lo – o que, segundo Gewen, esclareceria as intervenções de Kissinger em países como Chile e Argentina (para os defenderem da “ameaça vermelha”) e da intricada estratégia de détente, com exaustivas negociações para se alcançar o “equilíbrio” com o Vietnã e a União Soviética, apesar dos constantes (e mortíferos) bombardeios no Camboja e em Saigon.
No fundo, argumenta Gewen, o que impulsionaria a política de Kissinger é a noção aguda de uma ambiguidade que, se não for respeitada, terminará naquilo que seria a “inevitabilidade da tragédia”. Na política, de acordo com esse raciocínio, não há imperativos morais; há apenas o encontro com o desconhecido e ali, dentro de variáveis extremamente nebulosas, qualquer escolha corre o risco de ser não só a errada, mas sobretudo a mais letal de todas.
Isso não significa que Henry Kissinger é incapaz de ter uma ética. Sem dúvida, como todo o diplomata, ele possui princípios morais. O único problema é que ele os oculta com tamanha insistência para si mesmo que mal pode conhecê-los na realidade. Gewen evita o clichê de qualificá-lo como um político “maquiavélico”, mas também não cai na benevolência de um Niall Ferguson que o classifica como um “idealista” kantiano, afoito para implementar a “paz perpétua”, custe o que custar. A tragédia da política se torna inevitável, nesse caso, simplesmente porque os intérpretes deste “superkraut” (como a revista Time o chamou no auge da sua celebridade) jamais perceberam que, antes de tudo, ele faz parte de uma longa (e pouco divulgada) tradição histórica: a de ser um cortesão do poder.
Surgida no Renascimento, com a publicação do livro intitulado justamente O Cortesão (1528), escrito por Baldassare Castiglione, tal corrente de pensamento, se podemos chamá-la assim, promove uma forma de trilhar os labirintos da política por meio de uma “poética da dissimulação”, na qual o sujeito precisa usar constantemente uma máscara para agradar ao governante e sua súcia, não só para preservar a própria vida, mas também a sua sobrevivência material. A consequência direta disso é a ausência de sinceridade e de qualquer decisão moral ao dizer a verdade quando ela se tornou a única alternativa possível, mesmo que ela seja amarga para o político que está no comando de uma nação. O disfarce, aqui, pode ser o discurso cifrado, a ironia, o humor jocoso, quando não o próprio elogio feito com segundas intenções. Enfim, tudo aquilo que jamais teve relação com a nobreza da tragédia.
Eis aí o equívoco maior de Barry Gewen ao compreender Kissinger. Não há nenhuma inevitabilidade de um destino cruel se o sujeito que pratica este tipo de política jamais permitiu, dentro do seu coração, a comunicação da verdade, principalmente para si mesmo – e para seus semelhantes. A tragédia precisa dessa purgação, pois seu impulso é uma reviravolta moral que faz o sujeito fascinado pelo poder entender que, ao fim e ao cabo, isto vale muito pouco na vida de uma pessoa realmente autêntica.
Não foi o caso de Henry Kissinger. Ele sempre gostou de ser uma “eminência parda”, mesmo nos anos em que não estava mais na Casa Branca. Foi ouvido por Reagan (a quem desprezava), Bush pai e filho, Bill e Hillary Clinton e Barack Obama, mas jogado de escanteio por Donald Trump. Agora, com Joe Biden, ele tem uma segunda chance de voltar a ser um cortesão, com toda a sua graça e fleuma, senão fisicamente, pelo menos em espírito. Não é por acaso que, um dia após a posse do novo presidente americano, um comboio militar entrou na região noroeste da Síria, um país que até então tinha uma intervenção suave no governo anterior, em especial porque a ditadura de Bashar Al Assad era um obstáculo para o ressurgimento do Estado Islâmico. Motivo? “Preservar a democracia naquele local.”
Com essa justificativa, é evidente que não há mais a ambiguidade da política quando a dissimulação volta em cena – conforme se comprovou na semana passada, com a saída das tropas americanas em Cabul, no Afeganistão, numa desastrosa retirada semelhante ao que ocorreu em Saigon, no ano de 1975, uma operação que também teve a impressão digital de Kissinger. E assim ficamos com o gosto do trágico na boca ao percebermos que, afinal de contas, Walter Kirn estava completamente certo quando escreveu que este cortesão de poder foi o verdadeiro vencedor naquelas eleições de 2020 que mudaram o Ocidente para sempre. Quem viver, verá.
*É autor de ‘o Contágio da Mentira’ (âyiné, 2020).
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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