Por onde passa, sua abordagem à la Rashomon para a transfobia incentiva discussões. Como no cult de Akira Kurosawa de 1951, há diferentes perspectivas sobre um crime. E cada uma desnuda um pouco da intolerância brasileira. Rodado em Dourados e Bonito, em Mato Grosso do Sul, em novembro e dezembro de 2018, o filme vem ganhando elogios como um documento contra o preconceito.
“O processo de escrita de Madalena durou pouco mais de quatro anos, acompanhando as mudanças do Brasil entre 2013 e 2018. Desde o início do processo, os corroteiristas Thiago Gallego, Thiago Ortman, Tiago Coelho e eu sabíamos que não buscávamos um filme com tom policialesco e investigativo, que explorasse o assassinato de Madalena, sob um ponto de vista esteticamente violento. Nos interessava oposto dessa ideia”, explica Marcheti ao Estadão. “Testamos muitas coisas antes de descobrir uma forma saudável e respeitosa de narrar esse filme. Foi assim que chegamos à ideia de ter a história girando em torno da ausência, do desaparecimento, de Madalena.”
Nascido na cidade de Porto dos Gaúchos, no norte de Mato Grosso, há 32 anos, Marcheti, que vive hoje em Maputo, Moçambique, tinha apenas curtas em seu currículo quando embarcou no projeto Madalena. A opção de Madiano por cartografar a brutalidade contra as populações LGBT+ a partir de uma ausência encanta quem se aproxima de sua silenciosa (mas tensa) narrativa.
“Ao longo do processo, entendemos que não importaria ao filme investigar a maneira como Madalena foi morta ou quem a matou. Isso nos colocaria, inevitavelmente, sob uma estrutura de investigação muito preocupada em descobrir o homem que matou Madalena – o que nos soava injusto com ela. O que nos parecia realmente importante era pensar o porquê de um tipo de crime como este acontecer, ou melhor, pensar nos motivos que permitem que esse tipo de crime continue acontecendo, e fazer da ausência de Madalena uma presença que conduz a história, dando a ela algum protagonismo. Por mais que não vemos a história de Madalena, o filme gira em torno dela. E, nesse sentido, o longa se preocupa mais em testemunhar a maneira como cada um dos três personagens protagonistas reage à ausência de Madalena”, diz o cineasta.
Os três a quem o cineasta se refere são: Luziane (Natália Mazarim), Bianca (Pamella Yule) e Cristiano (Rafael de Bona). Marcheti os define como “a jovem desiludida que vive na periferia, o filho de fazendeiro que busca o respeito dos pais, e uma das amigas de Madalena que seguem a vida apesar de uma perda trágica”. Na trama, eles não têm conexões entre si, sendo egressos de realidades socioculturais diferentes. Mas serão impactados pela descoberta do corpo de Madalena em meio a uma paisagem de campos de soja.
“As diferentes reações à perda era o que, de fato, interessava a nós, pois algumas dessas reações estão ligadas a uma crise de empatia – a falta dela – que assola nosso país, em especial nos últimos anos. Quero dizer, a falta de capacidade de se identificar com as emoções e as dores do outro. E isso costuma ser ainda mais profundo quando o ‘outro’ é percebido por boa parte da sociedade como diferente com relação à norma, e às vezes até desprovido de sua humanidade, como é o caso das pessoas trans”, explica o cineasta.
A partir da montagem de Lia Kulakauskas, Marcheti aproveita essa dinâmica Rashomon para propor uma representação multifacetada de uma região, o Centro-Oeste, ainda pouco vista em festivais do exterior (para além de alguns filmes do Distrito Federal). Uma região que, segundo o realizador, é um Brasil pouco conhecido, principalmente por pessoas que vivem nos grandes centros.
Brasil rural
“O espectador vai encontrar no filme o Brasil dos gigantescos campos de soja e de quase nenhuma área de natureza local preservada; do campo tecnológico (o agro hi-tech); da música sertaneja; das caminhonetes caras que desfilam numa demonstração de poder na avenida central da cidade. No filme, também, há muito do Brasil da periferia, do trabalho informal, em que o lazer precisa se impor para conseguir espaço na vida. Por fim, há o Brasil trans, diverso e orgulhoso dessa diversidade, com senso de comunidade e irmandade, em que pessoas trans têm sonhos, travesti realiza seus sonhos e, mesmo diante de todas as brutalidades, encontra a felicidade”, acrescenta Marcheti.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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