Rosel Antonio Beraldo e Anor Sganzerla
Um tempo como o que estamos vivendo agora não está nada fácil para nele se situar, assim como não é nenhuma brincadeira os desafios que ele nos coloca diante dos olhos, cada um no seu contexto em particular tem sido testemunha dos extremos cotidianos que parecem não ter fim, a versatilidade dos acontecimentos é espantosa, comum também tem sido o fato de que tais eventos têm uma força poderosa sobre as pessoas, estas em muitas situações sentem-se anômalas, desenraizadas e desemparadas. A sociedade evita em demasia tratar certos assuntos vitais, usa para tanto uma série incomum de artifícios, ela é incapaz de criticar as suas ilusões, esse modo de ver as coisas apenas e puramente do lado que melhor lhe convém não abre espaço para alternativas; o jogo contínuo e perverso em busca do novo normal, não levando em conta que o normal pode muitas vezes matar.
A modernidade criou a ilusão de quanto mais modernos fôssemos em nossas atitudes, crenças e realizações, mais a humanidade seria dona de si mesma, esse protagonismo liderado pela melhor racionalidade teria o escopo de integrar o ser humano com aquele seu paraíso perdido, mas qual não é a surpresa ao se constatar que certos movimentos que apareceram por todos os lados batendo no peito que eles seriam a solução para todos os males, fizeram na verdade menos pela espécie humana do que a máquina de lavar roupas, assim como o aspirador de pó. É o curso sempre tortuoso e incerto da história humana em busca da sua liberdade, mesmo que para isso tenha de sacrificar a si própria em sua totalidade; tal projeto levado a ferro e fogo em muitas situações tem deixado muitos vestígios que vem se acirrando em muito em várias partes do globo gerando tensão.
Entre as tantas tensões existe uma em particular chamada violência, que por sua vez assume formas, contornos e divisões que se perdem de vista, ameaçando assim um projeto maior de futuro para todos, a violência que acompanha o século XXI é tão extensa e poderosa que faz que tudo ao seu redor tenha um preço, mas ao mesmo tempo nada tenha valor. A violência atual progride de maneira natural, certa e ao que tudo indica sem meios de fazê-la regredir, com a globalização a violência viu todas as barreiras ao redor de si se abrirem com múltiplas perspectivas, de tão poderosa que ela se tornou muitos temem que ela vire uma doença ocupacional corriqueira, haja vista que os pontos de referência que balizavam a sociedade até certo tempo atrás, hoje são meras sombras sem qualquer efeito concreto, que perderam seu espaço, deixando assim a sociedade mais débil e fraca.
Não precisamos ir muito longe para vermos a atuação da violência, ela campeia em todos os ambientes, até mesmo naqueles inimagináveis, ela ultrapassa em muito qualquer ideologia, fronteira ou regime governamental, ela depreda todas as condições minimamente favoráveis para uma existência digna; até mesmo nas boas ações e intenções podem conter em seu interior doses de violência variada. A violência atual é muito bem elaborada, tem um projeto, possui em seu âmago uma estrutura e estratégia que abarca todas as dimensões da vida, sem contar que ela pode assumir diferentes linguagens dependendo do seu público alvo. Pode ser visível como também invisível, barulhenta ou pior ainda silenciosa, ou seja, é aquela violência que vai entrando na vida de cada um sem que se perceba a sua chegada, essa ao contrário do que normalmente se imagina é mais comum.
A violência seja qual for ela, tem sim o poder de desamparar a pessoa, mais ainda ela faz despencar a esperança que em muitos ambientes já é pouca, a violência ainda tem a enorme capacidade de carregar em si mesma a cegueira, a mudez, bem como a surdez; esses três elementos quando atuando em conjunto carregam uma perversão indescritível da realidade. Podemos também anexar na já longa lista de violências, a falta de moradias, o desemprego, a falta de saneamento básico, falta de creches para as nossas crianças, as montanhas de todo tipo de lixo, os inúmeros casos de feminicídios, a violência contra a educação integral, a violência contra o meio ambiente; enfim um tempo sombrio que queiramos ou não precisamos aprender a viver nele sem no entanto compactuarmos com as diferentes violências nele inseridas; o mundo precisa urgentemente de nova criatividade.
Bioeticamente, as inúmeras formas de violências que tem se espalhado mundo afora são o protótipo de pequenos holocaustos, práticas deploráveis que enfraquecem qualquer sistema podendo protagonizar ainda muitas outras formas de violências além daquelas que já tão sobejamente conhecemos; num mundo sem freios, elas então acabam tornando-se amplamente relativizadas como se fossem algo do dia a dia. Nada pode ser pior do que a conivência escancarada com a violência, quantos de nós em algum momento já recebemos algum vídeo curto pelo whatsapp, vídeos recheados de violência, um especial nos vem à mente: uma chuva torrencial e um homem aparentemente alcoolizado rolando pela calçada e um cidadão belo e formoso andando em seu possante filmando esse homem por um tempo considerável e falando no vídeo os mais absurdos impropérios para aquele infeliz quase nu. Lidar com a violência exige muita esperança da nossa parte, uma busca incessante de novos caminhos; estar no mundo exige coragem, ser no mundo é ter cuidado.
Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, é Mestre em Bioética, Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR