Em outubro, o Senado já havia tentando aprovar a homenagem, mas o senador Izalci Lucas (PSDB-DF) solicitou vista, a pedido da Marinha, para “melhor conhecimento da matéria”. Na semana passada, a votação foi retomada. Lucas votou favoravelmente à homenagem, mas leu uma nota na qual a Marinha diz considerar que o movimento não pode ser avaliado como “um ato de bravura” nem de “caráter humanitário”.
“A revolta dos marinheiros de 1910 foi, de fato, um acontecimento triste na história do País. Todos os envolvidos, dentre eles a Marinha, setores do governo, os revoltosos e outras instituições tiveram culpas e omissões. Mas reconhecer erros não justifica avalizar outros e, por conseguinte, exaltar as ações dos revoltosos”.
A Marinha não respondeu aos pedidos de entrevista. Em artigo publicado em 2008 no jornal Folha de S.Paulo, a instituição já tinha usado argumentação semelhante. “Esta Força entende que outras formas de persuasão e de convencimento não foram esgotadas pelos amotinados, motivo pelo qual considera a Revolta da Chibata uma rebelião ilegal, sem qualquer amparo moral ou legítimo, não obstante a indesejável e inadmissível quebra de hierarquia”.
Coordenadora do grupo de trabalho de políticas etnorraciais da Defensoria Pública da União, Rita Cristina de Oliveira ressaltou que o posicionamento da Marinha não é novo. “Historicamente a Marinha tem esse posicionamento de não considerar João Cândido um herói”, afirmou.
O historiador Marco Morel, da Universidade do Estado do Rio (UERJ), considera que o silêncio da Marinha sobre João Cândido “é secular”. “Vemos que ele segue sendo um personagem incômodo, justamente porque essa rebelião toca em questões mal resolvidas em nossa sociedade até hoje, como o racismo estrutural e a violência cotidiana do Estado sobre as camadas mais pobres da população.”
‘ALMIRANTE NEGRO’
João Cândido nasceu no Rio Grande do Sul, em 1880. Era filho de ex-escravizados e trabalhou por mais de 15 anos na Marinha. Principal liderança entre os marujos no início do século passado, Cândido pedia o fim dos castigos cruéis e a melhoria da alimentação e das condições de vida dos marinheiros.
O castigo corporal de marujos tinha sido abolido pelo decreto nº 3 da República, de 16 de novembro de 1889. Mas voltou em abril de 1890, por outro decreto. Recaía sobre os praças (militares abaixo de oficial). Eram homens negros, mestiços, nordestinos e pobres em sua maioria. Alguns eram “recrutados” à força.
Formado por representantes da elite branca, o oficialato da Marinha não cedeu aos apelos de Cândido. Ele chegou a ser recebido pelo então presidente Nilo Peçanha para expor as reivindicações, também sem sucesso. Antes, Cândido esteve com a Marinha no exterior, conheceu colegas estrangeiros e, por eles, soube que a chibata não era mais usada em outros países. Mesmo no Exército brasileiro o castigo físico fora abolido antes do fim do Império. A revolta então começou a ser tramada nas embarcações.
O açoitamento do marinheiro Marcelino Menezes, com 250 chibatadas como castigo por causa de uma briga a bordo, precipitou o levante, em 21 de novembro. Os marujos tomaram alguns navios, entre os mais modernos da época, e içaram bandeiras vermelhas – símbolo de que não dariam nem aceitariam clemência. Sob a liderança de João Cândido, na Baía de Guanabara, mantiveram por quatro dias seus canhões apontados para a então capital federal, o Rio de Janeiro. Contra ela, dispararam alguns tiros. Em terra, baterias de canhões miravam a Armada.
A revolta terminou com um acordo aprovado pelo Senado e assinado pelo recém-empossado presidente Hermes da Fonseca. Decretava o fim da chibata nos navios e anistia para os revoltosos – aprovada no Congresso e sancionada pelo presidente. Mas Cândido e muitos de seus companheiros foram expulsos da Marinha, após uma revolta do Batalhão Naval, dias depois. O Almirante Negro, aparentemente, não tinha ligação com esse segundo movimento, mas foi preso. Foi decretado estado de sítio. Ao todo, cerca de 40 marinheiros foram encarcerados, e mais de mil desligados da Força. Do lado governista, houve 12 mortes, entre oficiais e praças. As rebeliões deixaram 200 marujos mortos. Ao menos dois civis – duas crianças – também morreram.
SÍMBOLO
João Cândido ficou preso na Ilha das Cobras. Trancado em uma cela cavada na rocha, sobreviveu sob uma pilha de corpos de marinheiros, que morreram sufocados por cal jogado na pequena masmorra, e pela falta de ar. Cândido foi um dos dois sobreviventes, entre os encarcerados por rebelião.
Ficou dois anos preso, chegou a ser declarado louco, foi expulso e, mesmo inocentado, não conseguia emprego. Nos anos 1930 foi integralista. Depois passou a viver como vendedor de peixe na Praça 15, no Rio. Morreu pobre em 1969. Foi reconhecido pelos movimentos negro e de direitos humanos como símbolo das duas lutas. Nos anos 2000, ganhou uma estátua, na mesma Praça 15 onde trabalhara.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Comentários estão fechados.