Médica usa a arte no combate à covid-19

“Guerra contra a covid-19” ou qualquer outra comparação bélica não agrada à médica Isadora Jochims, de 35 anos. Como diz em um poema que escreveu semanas atrás, ela está na linha de frente, não escondida em uma trincheira. “Cuido de vidas, não ceifo.”

Foi na arte que a médica encontrou as forças para expressar o que testemunha na pandemia. Também foi na expressão artística que obteve inspiração para criar intervenções para “humanizar” o atendimento a pacientes da covid-19 no hospital em que trabalha, como o “prontuário afetivo” e o “correio afetivo”, lançados nas últimas semanas.

O primeiro exemplo chegou a ser repetido em outros hospitais do País e consiste, basicamente, na criação de um prontuário que traga informações com os gostos e a personalidade do paciente que tem alguma impossibilidade de se comunicar, apesar de estar sedado ou apresentar confusão mental. Como explica a idealizadora, a ideia é tanto conectar o profissional de saúde ao enfermo quanto auxiliar no tratamento.

Cante pra ele!

No caso do paciente de iniciais A. F. G., por exemplo, o prontuário afetivo dizia “Gosta de: barulho de água e passarinho, Raul Seixas e música sertaneja raiz. Cante pra ele!.” O de outra hospitalizada descrevia, por sua vez: “Gosta de música internacional romântica e sertaneja (Gustavo Lima); família numerosa e amorosa; e boa garfo!”, em meio a pequenos desenhos de coração, flores e emojis. “Quando se pergunta sobre paixões, o que a pessoa gosta, a gente se identifica com alguns gostos”, explica ela.

As informações são colhidas com a família dos pacientes. No caso daqueles mais velhos, não habituados ao uso de tecnologia ou outras distrações durante a internação, começou-se a registrar as preferências de rotina, como horário de ouvir a missa.

Com proposta semelhante, ela costuma colocar uma música que o paciente goste no momento da intubação. “A sedação tem todo um movimento antes: tem de explicar ao paciente, o que é algo angustiante para a equipe de saúde. O mais habitual (é fazer o procedimento) quando o paciente já está rebaixado (em outras doenças). No covid isso não acontece, a gente identifica que ele está mal pelos exames. Então, está com consciência, tem de explicar.”

O correio foi um desdobramento dessa experiência. “Depois de tantas mensagens de carinho (por causa da repercussão do prontuário), percebi o quanto a população está carente de expressar gratidão, carinho.”

As cartas são fotocopiadas e colocadas em meio às pranchetas dos profissionais de saúde. Entre as recebidas, estão a de uma paciente de 7 anos e de uma médica que escreveu como se fosse destinada a uma tia que morreu na pandemia. Mais adiante, o material também vai virar uma grande intervenção artística.

Segundo ela, alguns colegas leem, se interessam, mas outros mal acabam percebendo. “Ficam no automático. A rotina de fazer aquilo toda a hora, todo o dia, a pessoa vira um robô. As intervenções são para quebrar essa rotina”, aponta Isadora. “Há um medo, um receio de se vincular.”

“Está todo mundo muito vulnerável, com muito sofrimento. Tem de ser algo espontâneo, não dá para fazer por imposição”, complementa ela. “Se a gente deixa de se vincular, perde o sentido do trabalho. O trabalho em saúde é uma troca de carinho, de cuidado.”

A médica é reumatologista no Hospital Universitário de Brasília (HUB) e integrante da Comissão de Humanização. Na pandemia, tem se dividido entre o ambulatório e o atendimento em leitos de retaguarda, no ano passado, e na enfermaria de covid-19, neste ano.

O espalhamento da covid-19 foi, inicialmente, sentido a partir do temor do contágio e da morte em meio a relatos trágicos cada vez mais frequentes de colegas de profissão. Com experiências anteriores em arte, Isadora chegou a fazer um autorretrato em que estava entubada, à beira da morte, no começo da pandemia.

Aquarelas

Foi nesse momento que resolveu pintar aquarelas com base em desabafos ouvidos informalmente de outros trabalhadores de saúde, como o da residente que atestou sete mortes em um único plantão. “Ouvia a história e fazia uma imagem mental. Chegava em casa e fazia a aquarela”, comenta. “Consegui dar uma reviravolta neste ano, com coisas mais relacionais, de troca de afeto.”

Para ela, as experiências com a arte também são uma forma de se fortalecer. “Pensei inúmeras vezes em pedir demissão, mas vinha essa motivação de continuar trabalhando”, comenta.

Outra intervenção recente foi a colagem na parede de uma sequência de cartazes com passo a passo para se desparamentar (dos equipamentos de proteção), a qual tem uma das últimas etapas com uma urna, papel, caneta e a orientação: “desparamente sentimentos ruins vivenciados aqui”.

Mais um exemplo é o uso de fita adesiva para escrever frases nas paredes, portas e no biombo onde os profissionais costumam se paramentar, tais como “Respire, inspire”, “Dou conforto na passagem” e “Me paramento de amor”.

Em outra ocasião, ela e uma equipe de plantão colocaram emojis na roupa, com a identificação do nome, para sinalizar como se sentiam naquele dia. “Na enfermaria covid, a gente se paramenta por inteiro. Às vezes, não reconhece a pessoa, não escuta direito a voz, não sabe se está triste ou feliz”, comenta.

Sobrevivência

Para a reumatologista, o uso da arte nessas situações ocorre até por uma “questão de sobrevivência” em meio a um cenário em que não consegue atender todos. “A gente não é imortal, um super-herói. Somos pessoas comuns, que têm família, que sofrem.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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