O médico Delfinus Nunes de Almeida, mais conhecido como Dr. Nunes, é um prescritor da medicina endocanabinoide, credenciado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Com ótimos resultados e sem efeitos colaterais, a medicina canábica avança, no Brasil, a passos lentos, bem diferente da realidade que se apresenta em outros países.
O Caderno Saúde teve uma longa conversa com Dr. Nunes, que fez uma ampla explanação sobre o assunto, a qual vamos dividir em quatro artigos, que serão publicados semanalmente. O primeiro trata sobre a história da cannabis no mundo, sua proibição e os recentes avanços sobre seu uso na medicina. Confira:
“Inicio dizendo que, em relação à medicina canábica, estamos uns 30 anos atrasados se nos compararmos com alguns países da Europa e outros da América, como Canadá e EUA. Mas também é importante, antes de tudo, que a gente entenda a evolução da planta.
Antes de um médico prescrever a cannabis medicinal é preciso um conhecimento amplo, adquirido através de corsos, com um período grande de estudo. Quando o profissional vai prescrevê-la, precisa entender tudo sobre como a planta age no organismo e a relação do corpo humano com ela.
A cannabis medicinal já é utilizada há mais de 5 mil anos. Sua evolução ocorreu junto com a da humanidade de uma forma bem adequada. Encontramos, registrado na história, o uso da cannabis para fins medicinais, além de em rituais para fins de elevação espiritual em várias comunidades. A arqueologia registra resquício da planta sendo utilizada pela humanidade há mais 25 anos, mas registros históricos apontam para pelo menos 5 mil anos, ou seja, há 3 mil anos antes de Cristo já se usava a cannabis em várias comunidades.
Essa é uma planta que se divide em várias espécies, o que permite que cresça em todas as regiões de todos os continentes. A mais usada para fins medicinal é a cannabis Sativa. Na América, a cannabis chegou primeiro com os colonizadores, depois os escravos trouxeram suas sementes escondidas a fim de cultivar a planta por aqui, uma vez que eles a usavam para rituais religiosos e também para fins medicinais.
Inclusive, o nome “maconha” é uma invenção dos escravos, que pegaram a palavra “cânhamo”, como se chama a flor da planta, e fizeram um anagrama com as letras para poder se comunicar entre eles.
Naquela época, o uso medicinal já era feito, mas de forma diferente do que fazemos agora. As propriedades eram utilizadas através de infusões, chás ou até mesmo fumada. Mais adiante, era também comum encontrar o óleo da cannabis nas farmácias, sendo algo bem fácil de se comprar.
Contudo, depois de milhares de anos de sua utilização, já no início do século passado, nos anos de 1930, criou-se uma guerra às drogas nos Estados Unidos, ao fim da chamada “Lei Seca”, quando a proibição de bebidas alcoólicas alavancou o uso de cocaína, heroína e ópio. Por fim, a cannabis, que também era utilizada para fins recreativos, acabou sendo incluída na lista de substâncias proibidas.
Na mesma década, muito influenciado pelos Estados Unidos, o Brasil também começou a reprimir seu uso, mas a proibição em nível federal veio em 1938, por meio da Lei de Fiscalização de Entorpecentes. Simplesmente passou a ser considerado tráfico quando alguma pessoa era pega com quantidades maiores, mesmo que fosse para fim medicinal, o que dificultou as pesquisas.
Por anos a maconha permaneceu criminalizada, até que em 1996 o estado da Califórnia legalizou seu uso para fins medicinais. Em 2003, o Canadá se tornou o primeiro país do mundo a legalizar a utilização da cannabis para fins medicinais e, antes dele, a Holanda já havia liberado em 1976, o uso para fins recreativos.
No Brasil, ainda não se alterou o proibicionismo da Lei das Drogas (11.343/2006), mas, hoje, por volta de mil pessoas possuem habeas corpus preventivo que permitem o cultivo e o consumo da cannabis para tratar doenças como autismo, epilepsia, Alzheimer, fibromialgia, depressão, ansiedade e enxaqueca crônica, além de 2.500 médicos que prescrevem a planta no país e algumas associações de pacientes com permissão para fornecer medicamentos para seus associados, como a Abrace Esperança, da Paraíba, com 28 mil inscritos. A Anvisa também autoriza a importação e comercialização de 18 produtos à base de cannabis.
É importante que as pessoas entendam que estamos falando de ciência e muito conhecimento até chegar ao ponto terapêutico em que estamos. Existem milhares de artigos científicos, experiência prática no dia a dia, realizada por vários cientistas, pesquisadores e médicos prescritores do mundo inteiro, que fazem a prática com conhecimento.
Já se isolou da planta mais de 177 canabinoides, mas a cada dia se descobre novas substâncias da planta que possuem princípios ativos.
Também é importante entender que a planta tem grande utilidade na indústria, com fibras mais resistentes que as do algodão, por exemplo, que pode ser utilizado para objetivo industrial, como a indústria têxtil e cosmética.
Inclusive, há mais ou menos 30 anos se descobriu, a partir de muita pesquisa e investigação, um sistema neuro regulador chamado sistema endocanabinoide nos seres humanos, assim como outras espécies. Estamos dizendo aqui que a planta produz um canabinoide que pode ser usado não só no homem, mas em outros animais, para regular esse sistema. Ele ativa neurotransmissores, se acoplando a receptores que vão ativar e melhorar o funcionamento de outros sistemas do nosso corpo, como o imunológico, circulatório, cardiovascular, nervoso central e o endócrino, com a produção de hormônios.
Esse sistema endocanabinoide passará a ser estudado nas universidades, já que os médicos formados até hoje não têm conhecimento sobre ele. Esses profissionais terão que buscar conhecê-lo porque é algo que está em debate no mundo inteiro e há muito conhecimento sendo produzido sobre ele. Aí está o segredo da medicina canabinoide.
Por isso, reafirmo: não estamos aqui falando sobre a maconha do tráfico. Sabemos que tudo o que se proíbe continua sendo usado, mas de forma ilegal. Dessa forma, a planta foi sendo cruzada, criando variações com alto teor de THC, assunto que será abordado na próxima semana. Até lá!”