A cineasta começou a pensar na história na época do lançamento de seu primeiro longa, Mate-Me Por Favor, em 2015, ao ler notícias sobre grupos de adolescentes e jovens mulheres que se juntavam para bater em outra mulher, ou por ela ter mais likes, ou por ser muito bonita, ou por ser considerada promíscua. Veio logo à cabeça o mito da Medusa que, em algumas versões, era transformada pela deusa Atena numa criatura horrorosa. “Fiquei pensando nessa necessidade de uma mulher controlar a outra e no machismo estrutural, de como isso está introjetado em nós”, disse. “O principal machismo que sofri foi de uma mulher, o que me marcou muito. É um assunto que precisa ser debatido. Essa desconstrução tem de vir de todo mundo.”
Ela também queria trabalhar novamente com Mari Oliveira, que tinha feito um papel importante, mas secundário, em seu filme anterior. Aqui, a atriz interpreta Mariana, jovem que segue um ideal de beleza específico com o objetivo de ser uma boa esposa, como todas as outras mulheres de seu grupo em uma igreja evangélica conservadora. Quando pensou nesse ambiente, já havia um crescimento do conservadorismo no Brasil, mas Anita achou que sua obra se passaria num futuro distópico. “O futuro acabou chegando”, disse. Medusa ainda acontece numa espécie de universo alternativo, já que a diretora trabalha na chave do fantástico. Suas referências são David Lynch, musicais, Dario Argento.
O novo filme é bem mais contundente do que o anterior, em que os jovens de classe média do Rio de Janeiro também frequentavam uma igreja evangélica pop. “Há um amadurecimento da Anita”, disse Mari. “Em Mate-me Por Favor, está tudo nas entrelinhas, é uma crítica que você precisa querer fazer. Medusa tem a coragem de colocar na boca dos personagens as coisas que precisam ser ditas. É uma crítica, é sobre conservadorismo, sobre o ganho de espaço das igrejas, a corrupção dentro das igrejas, o patriarcado, a pressão da sociedade sobre as mulheres.” A diretora reconhece que essas igrejas suprem um papel que o Estado e outros grupos não cumprem, de oferecer apoio, cursos, acolhimento, família. Mas, algumas vezes, usam as escrituras para fazer discursos machistas, homofóbicos e racistas.
Medusa fala dessa vertente. No filme, os homens formam uma espécie de exército, mas as mulheres não ficam atrás. A punição vem no enfear da outra, seja com cortes no rosto ou do cabelo. Quando, no revide de uma vítima, Mariana sofre na pele o castigo imposto à mulher que não se encaixa no padrão, começa seu desprendimento – à custa de um bocado de sofrimento. “Principalmente quando você é jovem, quer muito se encaixar no padrão. E ali é a beleza do cabelo liso, da maquiagem em tons pastel. É a bela, recatada e do lar”, disse a cineasta. “É quase uma onda dos anos 1950. É a mulher que está arrumada e cuidando do seu homem. No Brasil, isso é muito presente. Queria falar dessa pressão toda para se encaixar e para não ser chamada de louca, não ser tachada de histérica.”
Não à toa, a libertação vem na base do grito, no melhor estilo “a união faz a força”. “Acho que a gente pode perder o controle, às vezes. O filme é um exemplo extremo, mas muitas pessoas vão se relacionar”, afirmou Anita.
Por isso, nada melhor do que estrear na principal vitrine do cinema autoral do mundo, Cannes. “Numa outra situação, talvez estivesse nervosa, preocupada, mas, depois deste um ano e meio trancada em casa, estou grata de estar aqui, presente”, disse a diretora. Para a produtora Vania Catani, que frequenta o festival desde 2004, Cannes existir em 2021 já é um milagre. “Chorei de emoção. Isso aqui é a Disney da minha vida”, disse. “Neste ano, depois da pandemia, com o desmantelamento da política brasileira de cinema, estar aqui é uma grande alegria.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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