Autor de Haiti – Dilemas e Fracassos Internacionais e A ONU e a Epidemia de Cólera no Haiti, o professor aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) fala nesta entrevista ao Estadão sobre a situação no Haiti.
O que o assassinato de Jovenel Moise diz sobre a situação política e social do Haiti?
Diz que nós estamos em um processo extremamente perigoso, e atingindo patamares pouco usuais nas crises político-eleitorais haitianas. Em mais de 200 anos de história independente do Haiti, esse é o terceiro presidente a ser assassinado. Dezenas deles foram expulsos do poder por meio de impedimentos, de golpes, mas não se chegava a esse extremo. Havia, até mesmo, uma espécie de modelo de saída para uma ‘crise aguda política’, em que o perdedor recebia um passaporte diplomático, ia para o exterior, mas sempre houve um entendimento de que não se deveria tocar na figura do presidente, e muito menos na sua família. Então eu acho que nós alcançamos um patamar muito perigoso e inédito nas crises político-eleitorais haitianas.
O que vai ser do processo eleitoral no país?
É a Constituição que rege isso. O que ela diz? Em caso de impedimento, falecimento, doença, nos últimos seis meses de mandato do presidente, é o primeiro-ministro que assume. O governo que organiza eleições em um prazo de três meses. E é isso que vai acontecer. O agravante aqui é que Moise havia designado um outro primeiro-ministro, que não tomou posse ainda. E ele já reivindicou o cargo. Isso cria uma situação um pouco mais complicada, mas espero que eles se acertem logo e a oposição tenha a capacidade de controlar seus apetites eleitorais.
O senhor acredita que há força institucional para que o processo seja cumprido?
Sim. Isso se as forças estrangeiras, países supostamente próximos do Haiti, não interferirem. Pelo que eu sei, eles declararam apoio à institucionalidade, ao Estado de Direito e à Constituição haitiana.
A investigação pode ser resolvida rapidamente ou permanecer sem solução. Qual dos dois causaria mais instabilidade?
Depende de para quem você pergunta. O assassinato tem implicações internas fortes em meios empresariais, com vínculos no exterior, porque os mercenários são estrangeiros. A eleição deveria ser feita à luz de todos os fatos, sobretudo porque não somente seria resolvido esse crime bárbaro, mas também nós poderíamos, a partir daí, tomar algumas medidas quanto a esses grupos que se escondem através do anonimato, se escondem através de doações a manifestantes, que se escondem através de financiamento de gangues. É um mundo paralelo que poderia vir à luz.
Analistas apontam que o momento é de volatilidade. O que o senhor imagina dessa transição?
O povo haitiano é muito ordeiro, muito pacífico e adora viver. Quando aconteceu, eles ficaram absolutamente chocados e se recolheram em suas casas, seguindo a solicitação do governo. A oposição também foi sábia, pois sabe que, indiretamente, está por trás desse assassinato ao dar eco a todo tipo de acusação contra o presidente. O assassinato terrível
e bárbaro de Moise servirá para acalmar o jogo e levará a eleições e a assunção de um presidente novo em fevereiro de 2022. A oposição dizia que não iria às eleições com a presença de Moise. Ele dizia que não seria candidato, mas agora nem estará organizando as eleições. Então, não há nenhuma razão para a oposição não ir às eleições. A minha percepção é a de que nós teremos eleições e a situação se acalmará.
A comunidade internacional vem atuando para garantir a estabilidade política no Haiti?
Não. Cada país está fazendo o seu jogo. A OEA tenta fazer o jogo da legalidade. As Nações Unidas acompanham a OEA. Os Estados Unidos, às vezes, atuam de alguma forma, mas a França, não. O Brasil é indiferente, não tem uma posição muito clara na relação da política externa com o Haiti. Apesar do nosso embaixador ser muito competente, Brasília não tem muito interesse. Eu não poderia falar de comunidade internacional, eu teria de falar de interesses nacionais de cada país e suas relações com o Haiti.
Qual seria o interesse do Brasil?
O Brasil não tem interesse no mundo. Não tem interesse pela política externa. Isso já vem do final do governo da Dilma, veio se agravando com o Temer e agora está em um patamar inimaginável na nossa história diplomática.
O que mudou no Haiti com a missão de paz?
Desde 1993, foram realizadas dez missões no Haiti, e a ONU permanece lá, com seu escritório de representação e de mediação política. No entanto, a Minustah (20042017) se destaca por várias razões, e a primeira é o custo, que é imensamente maior que o resto somado. Para nós que estávamos lá, a verdadeira missão era a Minustah. Se dizia, na época, que ela era a missão para resolver e não voltar mais. Só para o seu funcionamento, ela gastou US$ 9,6 bilhões. Mas falar o que melhorou é difícil, porque no meio da missão teve o terremoto de 2010. Ele embaralha todas as cartas e tira o foco da segurança. A missão passou a limpar a cidade, a conseguir abrigo para os desabrigados, perdeu o foco. A missão de paz deveria ter acabado em 2011 ou 2012, e teria que ter tido outros tipos de missão para reconstrução, uma missão civil. Perdemos muito tempo prorrogando algo que não deveria ser prorrogado.
Qual o efeito da missão de paz?
Após o terremoto (de 2010), ao não dar prioridade às instituições haitianas, a missão, e o que se seguiu dela, ou seja, todas as doações para a reconstrução do Haiti, enfraqueceram o Estado e as instituições. Para que se tenha uma ideia, dos US$ 6,5 bilhões que foram doados, somente 1% passou pelo Estado haitiano. A presença internacional enfraqueceu, não somente as instituições, mas a própria democracia haitiana. Há exemplos onde a missão ou seus representantes intervieram em processos eleitorais. Afastaram o presidente René Préval em 2010. Eu falo isso porque eu participei da reunião e, como representante da OEA, impedi que acontecesse. É fato histórico, fato provado, e que mancha as missões de paz.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Comentários estão fechados.