Nossa quarta mulher marcante e brilhante, a ser homenageada neste mês de março de dois mil e vinte e três, viveu dezesseis séculos atrás, antiga podem muitos questionar, sim é verdade, mas a sua história possui contornos de extrema atualidade, ou seja, o que ela passou ontem, acontece hoje com muitas mulheres que conhecemos. O furor de ontem consagrado a ela na forma de assassinato explícito e conivência da sociedade da época, também se manifesta hoje com maior intensidade ainda, mesmo que esse tal furor venha camuflado sob inúmeras maneiras. Nossa homenageada, segundo as fontes disponíveis era uma mulher carismática, dotada de grande sabedoria e ponderação, é na verdade uma daquelas heroínas que se tentam de várias maneiras apagar seu nome da história, mas em vão; o nosso mundo atual pouco se difere da Alexandria onde ela viveu, ensinou e morreu.
Seu nome era Hypatia, covardemente assassinada em 415 D.C; alexandrina de nascimento, era filha de Theon, um eminente astrônomo e matemático, desde pequena circulou pelo efervescente mundo romano de então, ou seja, Alexandria no seu tempo era considerada uma espécie de capital do mundo da cultura, Hypatia seguiu cedo os passos de seu pai, tornou-se astrônoma, matemática e filósofa, em resumo foi uma cientista à moda antiga, com aquilo que ela tinha a seu dispor. Carismática, afirma-se que ela tinha o dom da palavra, por isso muitos vinham até ela para ouvir as suas conferências, Hypatia no seu tempo foi uma das raras mulheres que tinha o livre acesso nas reuniões com outros homens letrados, muitos a viam como uma exímia política, não no sentido de hoje obviamente; ao que tudo indica ela não assumiu nenhuma crença, mas nem por isso deixou ela de acreditar.
Os relatos que nos chegaram sobre Hypatia, nos dão conta de que ela foi ousada, ergueu a cabeça, ousou desafiar no bom sentido a ordem vigente de então, de modo público ou privado ela expunha as suas ideias, por muitos membros foi chamada de mãe, irmã, mestra, patrona, uma jovem senhora com alma nobre, muito além dos limites impostos pelo tempo e pelo espaço. Pela sua importância, uma das crateras lunares (muito próximo onde pousou a Apolo XI), leva o seu nome, digno de nota é que essa cientista com cálculos matemáticos inéditos para a época, construiu o astrolábio e também o hidroscópio, reza a lenda que ela foi a primeira mulher a dizer publicamente que a Terra não era o centro do universo; muitos julgam que é nesse momento que ela começa a ser perseguida pelas suas ideias, uma revolução sem precedentes que segundo alguns precisava ser de vez contida.
Hypatia também foi uma mulher destacada e voltada para a política, no seu tempo o império romano estava pegando fogo por todos os lados, política e religião alimentavam acalorados debates entre os mais diversos grupos existentes e Hypatia fora mergulhada nesse ambiente, agora cristianizado e ainda paganizado, por outras vias, uma mudança de paradigmas e também de era. Hypatia pertencia a escola filosófica de Plotino, uma herança platônica, que tentava sob vários ângulos encontrar a melhor síntese do cristianismo e das religiões ditas pagâs. É certo que Hypatia não abominava nenhum tipo de crença, não fazia oposição a quem pensava diferente dela; mas o mundo de Alexandria era por demais violento, as hostilidades entre grupos religiosos e políticos foi ficando cada vez mais forte, tornou-se comum em seu tempo demonizar este ou aquele, a caça às bruxas fora lançada.
Dias antes da páscoa de 415, o destino de Hypatia já estava traçado, sua elegante insolência gerou uma revolta desmedida por parte de grupos fundamentalistas religiosos da cidade, foi morta, despedaçada, arrancaram-lhe os olhos e não bastasse isso jogaram seu restos numa fogueira, em suma, a caça às bruxas começava a ter seus contornos definidos, esse assassinato ficou totalmente impune, haja vista seu suposto mandante Cirilo ser o bispo de Alexandria na ocasião e que nutria um ódio mortal para com Hypatia. As acusações contra ela foram as mais absurdas possíveis, tais como: bruxa, mágica a serviço unicamente do mal, perturbadora da ordem, da moral e dos bons costumes, aquela que estava desorientando os jovens e atentando contra a fé vigente. Tragicamente, a religião teve nesse episódio uma participação central; manchou para todo o sempre a sua função.
Bioeticamente, guardadas as devidas proporções, o que aconteceu com Hypatia, continuou a acontecer ao longo dos séculos seguintes e hoje em pleno século XXI, o que ocorreu com ela, acontece a tantas outras mulheres, sejam elas ilustres ou desconhecidas do grande público, uma morte horrível, por motivos tão fúteis se levados pelo que temos hoje, isto é, morreu por ela ter convicções diferentes, foi assassinada por ter superado muitos homens da sua época em diversos assuntos, foi trucidada por que o seu deus era diferente, mas não incompatível com o Deus oficial do império romano. Depois da morte de Hypatia, curiosamente Alexandria nunca mais foi a mesma após esse feminicídio horrendo, ela perdeu seu posto de cidade da cultura universal que possuía. Ontem como hoje, todo e qualquer fanatismo é uma doença terrível que corrói a sociedade, escraviza as pessoas com ideias delirantes e utópicas. Com Hypatia representamos mesmo que minimamente, todas aquelas mulheres vítimas da mesquinhez, das injustiças, ódios e descalabros sociais.
Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, Mestre em Bioética e Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR.
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