Apesar do racismo ainda excluir os hazara de origem mongol dentro do complexo tecido social afegão – “aos tadjiques o Tadjiquistão, aos usbeques o Usbequistão e aos hazaras, o cemitério”, dizem alguns dos puristas -, Fawad morreu não por tocar ghichak, mas por cantar. As leis que imperaram no país entre 1996 e 2001, durante a primeira era taleban, estão em vigor e os músicos que se atreverem a soltar a voz em dari, pashto, uzbeque, turcomano, balochi, pashayi, nuristani ou qualquer um dos 200 dialetos do território afegão serão devidamente punidos de acordo com a raiva do algoz que identificar o subversivo em questão. A lista das profanações está de volta e a música, a única arte com um poder de conexão capaz de ser tão divino quanto bestial, não cabe nos preceitos de um país que busca a pureza absoluta.
As primeiras notícias são aterradoras aos que acreditaram na promessa de uma gestão mais equilibrada. “Os combatentes do Taleban já estão reprimindo violentamente qualquer atividade musical. Eles começaram a impedir as pessoas de escutar música e as lojas que vendem instrumentos foram destruídas”, contou à Rádio França Internacional o musicólogo Ahmad Naser Sarmast, diretor do Instituto Nacional Afegão de Música.
Ahmad diz ainda que cerca de 400 alunos do instituto estão escondendo seus instrumentos de possíveis diligências. “Sabemos que o Taleban está indo de casa em casa. Meus alunos têm medo de serem punidos se um instrumento for encontrado.” Se essa é a situação dos alunos de um centro de música erudita, imaginemos a condição dos nomes ligados a cenas como o rap, o pop, o rock e – sim, ele existe – ao heavy-metal afegão.
A cantora pop Aryana Sayeed, com 1,4 milhão de seguidores no Instagram, zarpou para o Catar com planos de chegar à Turquia horas depois da reconquista Taleban. Se apenas cantasse, Aryana estaria “errada”, mas suas profanações vão além: ex-jurada do programa The Voice Afeganistão, ela fala em nome de uma sociedade igualitária entre homens e mulheres. Sua captura seria um deleite. Ao chegar às pressas ao aeroporto de Cabul com seu noivo, ela viu um filme de horror. Uma mãe impedida de embarcar pedia aos prantos que Sayeed levasse seu bebê. “Não consigo separar um bebê de sua mãe, e a mãe realmente queria que eu o pegasse, mas eu não pude”, disse Sayeed, em suas redes.
Um país sem litoral e de terreno montanhoso cravado no centro da Ásia reflete na música a sua polifonia geográfica. Suas fronteiras, lugares onde não existe fronteira alguma, estão por todo lado: com o Paquistão ao Sul e ao Leste; com o Irã ao Oeste; com o Turcomenistão, o Usbequistão e o Tajiquistão ao Norte; e com a China a Nordeste. São quase 40 milhões de seres, cantores e cantoras em potencial, formando uma malha cultural que, apesar da aparente vitoriosa largada no projeto de retomada, não se entrega mais a uma única crença. A música afegã, com tudo o que pode ser chamado assim, está em silêncio e seus intérpretes fugiram, mas ela não deixou de existir.
O rap de Bezhan Kunduzi é uma declaração de guerra ao Taleban. “Ó, inimigos do Afeganistão, nossos soldados vão enterrá-los”, ele disse, em 2015, quando os norte-americanos dominavam a área. Os “inimigos” eram então o Taleban e “nossos soldados”, o exército afegão e as tropas mantidas por Barack Obama. A popularidade de Kunduzi cresceu depois que um jovem soldado afegão se tornou herói ao defender o parlamento de um ataque Taleban com tudo para ser terrivelmente mortal. Aos jornalistas que pediram para o jovem descrever como ele havia matado sete infiltrados talebans, o soldado repetiu a expressão em dari “taq chapako!”, uma frase que significa algo como “bang, e já era!”. Kunduzi fez um rap com a expressão e se tornou um fenômeno. Sua cabeça, agora, vale ouro.
O rock que conseguiu submergir dos escombros e ter uma vida relativamente tranquila sobretudo entre 2009 e 2011 pode ser percebido em duas bandas. A Kabul Dreams, com uma passagem elogiada por uma edição do festival South by Southwest, nos Estados Unidos, foi formada em 2008 por expatriados e se apresentou por algum tempo como “a primeira banda indie rock” do país. Apesar de terem gravado um clipe em Cabul, nenhum de seus integrantes vivia no país. O cantor Sulaymon Qardash era do Usbequistão; o baixista Siddique Ahmad, do Paquistão; e o baterista Mujtaba Habibi, do Irã. Como cada um falava uma língua, o jeito foi gravar em inglês. Seu mais recente sinal de vida foi postado em 6 de agosto de 2021 no Spotify: o ótimo single Butcher on the City. Isso depois de lançarem, em 2013, no álbum Plastic Words, uma canção chamada Air que dizia: “Bombas e explosões não estão me assustando, às vezes estão apenas brincando com meu coração”. Assustados, eles desapareceram.
O metal afegão tem como seu maior representante a District Unknown. Tem não, tinha. Ela não existe mais e o paradeiro de seus integrantes, ao menos para os fãs, é desconhecido desde 2019. Uma pena. O grupo tem uma força vulcânica, que a revista norte-americana Rolling Stone classificou como “metal psicodélico”, talvez mais baseada no vídeo da faixa de nome 64 do que nas características do som, e sua história foi usada como eixo principal no documentário Rockabul, filmado pelo australiano Travis Beard. “Você pode até viver com medo, mas, se tivéssemos gastado tempo tentando adivinhar quando a próxima bomba seria jogada contra nós, não teríamos feito nada”, disse o vocalista à época, Lemar Sadat.
Nem tudo são escombros na música afegã. A reportagem conferiu na tarde de segunda, 30, que algumas das rádios de cidades importantes do país, como Cabul, Sherbeghan, Jalalabad e Kandahar, seguem com suas programações sem restrições aparentes a ocidentalismos e outras “maldições”. A Spogmai FM 102,2 de Cabul, que apresenta um misto de música pop e tradicional, toca canções em inglês.
A BFBS é ainda mais pop e mostra um R&B afegão bem nos moldes de Beyoncé cantado, surpreendentemente, por mulheres. A Turkmen Arzu, de Sherbeghan, toca uma espécie de, ofensa das ofensas, funk afegão. O rap em língua árabe rola solto e em inglês na 89.8 Cheenar Radio FM e a Kilid Kandahar parece bastante ortodoxa, mas é bem-humorada e faz perguntas aos ouvintes sobre cultura pop. Quando eles erram, um barulho de vidro quebrando é colocado no ar como se ruísse ali, ao vivo, a última liberdade de um povo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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