A partir de todas as mudanças deste ano, Cortella direciona o olhar reflexivo para o mercado de trabalho, suas relações e comportamentos em seu novo livro, Quem Sabe Faz a Hora, lançado neste mês pela Editora Planeta.
Ao se debruçar em torno do que cerca o mundo do trabalho e a carreira – muitas vezes, misturado com o mundo pessoal -, como a forma de agir, a necessidade de aprender a escutar as dores do outro e a lidar com os conflitos e os confrontos, o filósofo traça, como o próprio intertítulo diz, “as competências certas em tempos incertos”.
“A liderança precisa também lidar com questões emocionais. Afinal de contas, nós estamos trabalhando, nadando, atravessando, remando num mundo com uma dificuldade imensa. Temos perdas à nossa volta, não são apenas de vidas – que são as que importam mais -, mas perdas também de processos, sonhos, convivências. Um líder precisa ter isso muito claro”, destaca ele durante a conversa que teve com o jornal O Estado de S. Paulo que pode ser acompanhada a seguir.
Como os papéis de gestão e liderança mudaram nesse último ano pandêmico?
Nós não temos um mundo como tínhamos e dificilmente o teremos. Quando terminar o tempo dessa tempestade, que nos afoga em larga escala e que nos deixa em estado de tensão, não seremos idênticos, não seremos inéditos. Ou seja, mesmo que eu utilize todo um aparato digital, tal como usamos hoje, nós seremos diferentes, mas não inéditos. Não seremos como nunca fomos e não continuaremos da mesma forma. Uma das coisas que marca esse campo é o de quem lida com gestão de pessoas, projetos, negócios, atividades. Como essas pessoas têm que se conectar dentro de um mundo em que a conexão digital acabou sendo decisiva, mas não exclusiva. Como que, nas múltiplas atividades que temos, a gente consegue gerir projetos e processos com pessoas, de modo que se tenha hoje uma possibilidade de ação remota, em que não se tenha a convivência do cotidiano, daquilo que é mais próximo, portanto o nosso sensorial se ausenta.
Como fazer a gestão da equipe?
Eu tenho que mudar as métricas. Uma das alteradas é que, entendendo que a circunstância doméstica tem uma série de interveniências, o ordenamento do trabalho precisa ser em um horário ajustado, ainda mais com famílias que têm crianças e que precisam ordenar o uso do mundo digital, as tarefas de casas. Lembrando que quem atua mais no mundo corporativo, e não no chão de fábrica, está em casa. Então, vou trabalhar não pela presencialidade, mas pela eficácia do que realizou. A gestão vai ter que lidar, inclusive, com um componente que antes a gente não tinha tanto à nossa volta a tal ponto que se dizia muito no mundo corporativo: “não traga os seus problemas de casa”. Agora, os líderes e gestores não só estão em casa como as pessoas com as quais a gente mantém algum tipo de relação de autoridade também estão em casa. Isso faz com que eu precise ter um outro olhar sobre isso, não que seja menos exigente, mas menos inclemente. A liderança precisa também lidar com questões emocionais. Afinal de contas, nós estamos trabalhando, nadando, atravessando, remando num mundo com uma dificuldade imensa. Temos perdas à nossa volta, não são apenas de vidas, mas perdas também de processos, sonhos, convivências. Um líder precisa ter isso muito claro. Há algo que o libanês Khalil Gibran disse um dia: “As grandes dores são mudas”. Muitas vezes, o fato de eu ter um colaborador que não reclama não necessariamente assim é. É preciso que eu, como liderança, disponha de outras ferramentas a que antes eu não estava habituado. Não significa que eu vá ser um psicólogo, mas eu não posso desconhecer o ferramental dessa área para notar as grandes dores que são mudas, porque mudas sendo elas podem indicar uma questão séria.
Um dos pontos-chave em qualquer relação, principalmente a profissional, é uma comunicação eficaz, o que já era um ponto de atenção no mundo corporativo. Agora, parece inevitável que haja ainda mais ruídos, então como manter uma comunicação eficaz nesse momento?
Uma das coisas necessárias é a de primeiro ser didático naquilo que fala. A comunicação pressupõe uma empatia, que eu queira que a outra pessoa fique com o que estou dizendo e tenha disponibilidade para acolher o que eu estou comunicando. Nem sempre há empatia, então um dos modos, nesse momento, é ter uma comunicação que não seja enfadonha, que utilize recursos que podem ser utilizados nesse momento. Por exemplo, em uma reunião, tinha-se o costume muito excessivo de imagens e slides, que produzem uma facilitação da distração. Com uma imagem na tela, a possibilidade de eu ficar desatento é mais forte. Na docência – estou há 47 anos dando aulas -, uma das coisas mais fortes até hoje é escrever na lousa. Não dispensar o computador ou digital, mas ser capaz de fazer com que as pessoas tenham a possibilidade de construir um universo conceitual, que elas não tenham nada que seja distrativo. Eu estou levantando este polo porque a comunicação terá de partir de um pressuposto de que, se sou eu que comunico, preciso estar preparado para fazê-lo e, se sei que não estou, me preparar. Mário Quintana dizia que, quando um leitor tem de perguntar ao autor o que ele quis dizer com isso, um dos dois é burro. Eu, como comunicador, gosto de pressupor que sou eu que sou burro e, portanto, tenho que me preparar melhor. Toda vez que eu, como professor, tive que corrigir uma prova, eu jamais poderia esquecer que, ao avaliar uma turma, eu estava me avaliando.
Por que diz isso?
Porque hoje a comunicação é mais marcada ainda pela importância de deixar nítido qual é o processo e o propósito para fazer com que a pessoa se considere acolhida naquilo que está sendo colocado. A gente precisa entender que estamos inundados de estruturas de comunicação, vivemos um tsunami informacional, em que é preciso ser cada vez mais seletivo naquilo que precisa ser comunicado, para não soterrar as pessoas.
Em uma passagem do livro, você diz que a atitude do profissional, principalmente neste momento, têm mais a ver com a letra da música Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, do que de Deixa a vida me levar, de Zeca Pagodinho. Como isso se aplica ao mercado de trabalho?
Uma das coisas mais importantes é não esquecer o conceito clássico, que vem dos gregos, de oportunidade. De quando os romanos no passado falavam para não se perder o momento, para não deixá-lo se esvair. Claro que quando Geraldo Vandré, o estupendo paraibano, aproveita isso e faz uma canção magnífica, ele está sugerindo algo que qualquer pessoa tem sempre que ter no horizonte, que é a capacidade protagonista, isto é, a noção de ser proativo em vez de ser meramente reativo. Nesse sentido, entender que quando se busca em vez de apenas se aguardar, a possibilidade de se encontrar aquilo que se procura é muito maior do que apenas submeter-se a circunstâncias sob as quais você não tem nenhum tipo de intencionalidade. Por isso, “deixa a vida me levar, vida leva eu” é uma delícia para um momento de lazer, para o sossego.
Você defende que empreender, apesar de ser usado bastante no ramo dos negócios, não tem apenas essa conotação. O que é ter uma atitude empreendedora no mercado de trabalho?
Eu gosto muito de relacionar a noção de empreender com a noção de autoria, isto é, ser autor da própria trajetória. Autonomia é quando eu, no âmbito da minha liberdade de ação, sigo o que entendo como o que desejo, como o mais correto. Por isso, sendo eu uma pessoa autônoma, e não soberana, seria tolo supor que no afeto, na carreira, na amizade, eu seja soberano. Eu dependo muito daquilo que não está ligado à minha decisão exclusiva. Não sou eu que decido tudo, mas naquilo que sou eu que decido, eu preciso fazê-lo. Embora eu não tenha uma autonomia absoluta – eu sou dono de mim, mas não de tudo que está à minha volta – há limite. Isso significa que, se eu não mando em tudo o que faço, naquilo que mando tenho que ter consciência, capacidade de flexibilidade em relação à alteração de rota e humildade para construir as ferramentas que eu ainda não disponho. Isso vale para tudo aquilo que te leva a pensar que você não pode qualquer coisa, mas alguma coisa pode. Nessa alguma coisa que posso, eu, sem dúvida, serei o autor dessa trajetória. E quando levado for, eu quero, naquele modo de ser levado, alguma coisa que seja consciência deliberada.
A gente tem falado bastante sobre propósito. O reconhecimento profissional vem em parte do reconhecimento financeiro e dos benefícios, claro, mas você diz que ele é ainda mais satisfatório quando vai além deles. De onde mais pode vir essa satisfação com o trabalho?
Esse livro retoma um outro livro que escrevi, que se chama Por que fazemos o que fazemos?, isso tem a ver com uma intenção maior das pessoas de não serem apenas tarefeiras, mas especialmente terem a possibilidade de enxergar a razão do motivo pelo qual fazem o que fazem. A ideia de propósito tem que estar na pessoa. Tem que ter clareza do que são as suas razões. No entanto, uma das coisas que mais faz com que o propósito do indivíduo possa ser partilhado com outros propósitos é o reconhecimento. É a capacidade não só de elogiar, mas ao mesmo tempo dignificar aquilo que uma pessoa faz. Se dá de modo financeiro, mas não exclusivamente por ele. Se dá pela percepção da autoria, exaltação da relevância, notificação da importância do que está sendo feito e o modo como a empresa é capaz de ter uma interface com o que a pessoa faz. Se há uma coincidência do que eu gosto e daquilo que a empresa se propõe, essa coincidência me deixa com uma harmonia maior com o que eu tenho de viver.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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