Quando recebeu o diagnóstico de endometriose, a médica da psicóloga Gessemir de Sousa Dantas sugeriu que ela e seu marido, Celito Nuernberg, optassem por uma inseminação artificial. Apesar de poder gestar, não seria possível usar os óvulos de Gessemir na fecundação, somente o sêmen de Celito. Foi quando ela entendeu que o seu desejo de ser mãe não passava pela necessidade de uma gestação pelos meios “naturais”, e que ser mãe era muito maior e grandioso também pelas vias da adoção.
Vale ressaltar que seu marido a ajudou nesta decisão e reflexão quando lhe falou que “se não podia o meu óvulo, ele também não tinha necessidade de seu esperma para se tornar pai”, relembra. “Tudo isso aconteceu em janeiro de 2005, e meu primogênito nasceu em 27 de janeiro de 2005, em Manaus”, emociona-se. Mas do nascimento até a adoção foi um caminho.
Em fevereiro de 2009, Gessemor e Celito iniciaram o processo de cadastro para adoção. Foi então que perceberam que, durante o preenchimento do questionário socioeconômico, é como se o adotante fosse construindo um filho ou uma filha. “Nós decidimos que isso não estava de acordo com nossos sentimentos e desejos. Colocamos que não importava o sexo, nem raça, sobretudo sendo uma paraense e um paranaense morando em Manaus”, diz. Também decidiram que não precisava ser uma criança recém-nascida porque, durante o processo, ficaram sabendo que, para as crianças mais velhas, acima de 2 anos, era muito mais difícil conseguir uma família.
Mas foram as perguntas sobre saúde que fez o casal sofrer. “Quando se trata de uma criança que nasce de parto biológico, a gente imagina que todo pai e toda mãe quer que ela venha saudável, mas isso não é uma escolha. No nosso caso, a vivência de um parto diferente e, por isso, era estranho responder essa questão. Chegamos a conclusão que não poderíamos escolher com ou sem doença, por isso deixamos essa parte em aberto, deixamos que o universo decidisse sobre o filho que chegaria”, diz. Isso fez com que o casal tivesse um perfil bem diferente da maioria dos adotantes, o chamado perfil aberto.
Luiz Fernando
Para a surpresa de Gessemir e Celito, depois de exatos nove meses receberam a tão esperada ligação da cegonha que estava trazendo o seu primeiro filho. Era um menino de 4 anos e 11 meses que, conforme lhes disseram, tinha leucemia e estava em estado terminal. Como a criança morava no abrigo desde bebezinho, a promotora decidiu aproveitar esse perfil aberto para que ele fizesse a até então inevitável passagem dentro do amor de uma família. “Foi um misto de sentimentos porque a gente não queria receber um filho que já ia morrer no dia seguinte, como eles falavam. A ligação ocorreu ao meio-dia, e tínhamos até as 14h para dar a resposta porque eles estavam correndo contra o tempo. Decidimos, então, que não importava se ia ser um dia, uma semana ou algumas horas, nós iríamos aceitar essa criança”, relembra Gessemir.
O casal, então, recebeu Luiz Fernando. Depois descobriram que o diagnóstico não era leucemia, mas anemia falciforme, que também não tem cura, mas é uma doença tratável, mesmo que a criança estivesse realmente em uma condição bastante difícil. “Ele está conosco há 13 anos. Hoje ele tem 17 anos e está cursando o 3º ano do Ensino Médio”, celebram.
Gessemir relata que, desde então, vive um dia de cada vez e experiencia na vida cotidiana o amor incondicional. “Com a chegada do Luiz Fernando nascia uma mãe. É como se eu fosse me reeditando todos os dias, principalmente diante de sentimentos de impotência perante os desafios da doença e o medo diário de perder meu filho”, conta.
Nessas alturas, a psicóloga já havia esquecido o combinado do início, de que ele não viveria. “Desde o dia em que nós o recebemos, esquecemos que era ‘terminal’. Depois veio o diagnóstico de autismo leve, e a gente sempre reafirmando um dia de cada vez”.
Gabriel
Já na segunda adoção, o casal não estava na fila e nem planejando um segundo filho, mas simplesmente aconteceu. Foi também em janeiro, dessa vez de 2019, já morando em Francisco Beltrão, quando foram para consulta do tratamento do Luiz Fernando, que é feito em Curitiba. “Ficamos sabendo a história do Gabriel, que também era uma criança que estava abrigada, com 1 ano e 3 meses, com o mesmo diagnóstico de doença falciforme, e que estava com dificuldade para ser recebido em uma família”, conta.
Gabriel já estava no cadastro nacional, mas, por conta da situação de saúde — e no momento estava com um risco sério de morte devido a rotineiras ocorrências de infecção — ele passava mais tempo internado do que no abrigo. A adoção era urgente. No hospital, eles sabiam que essa era uma história muito parecida com a do Luiz Fernando, e conversaram com Gessemir. “Falei que já não tinha uma idade apropriada. Eu, com 59 anos, e meu marido com 69 anos, cuidado de uma criança com 1 ano e 3 meses não parecia uma boa ideia. Ele merecia um casal mais jovem”, acredita.
A médica e a chefe do ambulatório pediram ajuda, e a psicóloga se comprometeu em auxiliar. “Entrei em contanto com a vara de infância de Beltrão e perguntei se existia alguém com esse perfil que pudesse receber o Gabriel, e disse que me colocava à disposição para ajudar essa família, já que eu também passei por tudo isso. Fiquei sabendo que não tinha adotante no perfil e que ninguém poderia ser consultado porque essa é uma regra. Aí a técnica sugeriu que fosse eu”, diz.
Com a dificuldade de Gabriel encontrar uma família, as coisas foram encaminhando para a adoção. “Depois de 15 dias, fomos chamados e nos disseram que, apesar de não terem encontrado ninguém, ele estava necessitando sair do abrigo pela sua condição de saúde. E lá fomos para Ponta Grossa receber o Gabriel. Foi uma outra gravidez, dessa vez temporaria, e apesar de não ser planejada foi muito bem-vinda”, conta.
Dessa vez Luiz Fernando também participou da decisão, e foi decisivo, diz Gessemir, quando ele disse que “se até agora não apareceu ninguém é porque é para a ser a gente. É uma história muito parecida com a minha, então tem que ser vocês. Se vocês estiverem preocupados com a idade, fiquem tranquilos que eu vou cuidar dele na ausência de vocês”.
Foi então que Gessemir nasceu mãe para Gabriel. “Cada filho tem as suas necessidades. Essa adaptação foi muito maior pela diferença de idade. E a necessidade não era nossa, de ser pai e mãe, mas de suprir a necessidade daquela criança em ser filho”, ensina.
Processos e aprendizados
Gessemir acredita que, hoje, o processo de adoção avançou bastante nos obstáculos burocráticos para efeitos legais da maternidade e paternidade. Sua grande preocupação é, no entanto, de quem acha que vai colocar uma criança no lugar de outra que não veio, ou que veio e partiu cedo. “O filho que veio de adoção não vai ocupar o lugar de ninguém na nossa vida, eles vêm ocupar o seu próprio lugar. E é preciso que a gente não tenha essa fantasia de que a criança por adoção vem para resolver problemas na nossa família, na vida do casal ou mesmo preencher os vazios da pessoa. Temos que lembrar sempre que, ao ser mãe ou pai por adoção, a necessidade daquela pessoa que chega na nossa casa é a mais importante”, diz.
Para ela, adotar também não é um ato de solidariedade, mas sim acordar e adormecer mãe, com todo o peso que essa função carrega, “inclusive tudo o que precisamos fazer para nos reeditarmos, nos curarmos e nos tornarmos pessoas melhores para que a criança possa receber amor da forma mais genuína”, alerta.
Gessemir aprende com seus filhos todos os dias sobre amor incondicional. Junto com eles, ela também cresce e renasce. “Eu não sei se teria outro caminho. Por mais dolorosa que seja a escolha que fiz, e também feliz, eu fiz e faço o que posso e que, tenho certeza, era para eu fazer. Estava escrito nas estrelas”, acredita. “O conceito do que é esse amor incondicional é construído diariamente. Na verdade, não somos mães melhores e nem piores, somos mães e pais, o que independe da maneira como foi o nascimento da criança”, finaliza.