Tiago de Melo Novais
Parecia improvável que depois do pentecostalismo e o neopentecostalismo haveria outra vertente cristã que ganharia destaque fora dos âmbitos religiosos no Brasil. Por bem ou por mal, a ala reformada (calvinista) brasileira, e mais especificamente a tradição neocalvinista, tem sido associada até mesmo ao governo de Bolsonaro.
Por não pressupor que o leitor saiba do que se trata, explico. Mas começo pela negativa: o Neocalvinismo não é o ressurgimento de uma teologia de corte calvinista, que, quando muito, afeta o que se entende sobre o caminho da salvação do crente. É uma tradição intelectual cristã específica, que nasce na Holanda e que surgiu como reação ao enfraquecimento da religião causado pelas mudanças vindas da Filosofia Moderna e da Revolução Francesa. Seu precursor foi um teólogo reformado, professor e político, chamado Abraham Kuyper, figura multifacetada e controversa, o qual chegou a ocupar o cargo de Primeiro-ministro da Holanda. Além dele, outros deram continuidade ao que se tornou uma tradição intelectual.
Sem rodeios, suas principais ideias se resumem na proposta de que o cristianismo é melhor entendido quando promove a integração da fé com os outros aspectos da vida e da sociedade – inclusive aqueles em que a fé já não é mais tão bem-vinda, como a cultura e política. No Brasil, o Neocalvinismo não prosperou até pouquíssimo tempo atrás, quando se pôde identificar um esforço editorial de tradução de obras dos seus autores e disseminação das suas ideias.
Diante disso, alguém poderia indagar o motivo que torna essa vertente cristã sequer digna de menção, como tem ocorrido até mesmo em jornais de âmbito nacional. Ao meu ver, a razão é, antes de tudo, uma associação equivocada. Gostaria de explicar através de duas observações que dizem respeito ao nosso contexto social e político, e por isso, as considero importantes tanto para o leitor cristão, quanto não cristão.
Primeiro, embora o Neocalvinismo seja uma tradição ainda pouco conhecida por aqui, seu nome facilmente conduz a erros. Um deles tem ligação direta com o governo Bolsonaro, pois altos cargos do executivo e judiciário foram ocupados por pastores presbiterianos, reconhecidamente calvinistas. Cito alguns: André Mendonça, ex-AGU e agora Ministro do STF, Milton Ribeiro no Ministério da Educação e Benedito Guimarães Aguiar Neto na CAPES.
Após a ditadura, a confluência dos calvinistas com o governo e a política nunca foi tão grande no país, o que naturalmente coloca em suspeição uma parcela até então inexpressiva dos protestantes. Nesse sentido, parece inegável um alinhamento ideológico de alguns calvinistas com o bolsonarismo, o que não é motivo suficiente para transferir a associação para o campo Neocalvinista (nem calvinista como um todo). Não só isso. Por não possuir uma denominação religiosa ou instituição política no Brasil, a tradição neocalvinista é usualmente identificada sem muito rigor com qualquer movimento que compartilhe semelhanças, inclusive terminológicas.
Segundo, as ideias neocalvinistas dificultam sua rotulação em termos políticos. É constantemente interpretado por seus sucessores de diferentes modos, seja mais à esquerda ou à direita. Para os progressistas, o Neocalvinismo é lido como uma potência para promover o pluralismo religioso e o engajamento das religiões na esfera pública.
Para os conservadores, é entendido como uma força de sofisticação intelectual para manter a tradição cristã em um tempo avesso à fé. Então, até certo ponto, é correto afirmar que a tradição possui afinidade com o senso moral de governos conservadores, o que, por sua vez, não é o mesmo que afirmar uma correspondência entre o reacionarismo do governo Bolsonaro e o Neocalvinismo, por exemplo. Mesmo com suas muitas faces possíveis, alguns limites se impõem em nome da coerência.
Concluo com um convite: que o leitor amplie o conhecimento do que ainda é desconhecido, só assim um texto como este (que desfaz a associação equivocada) não necessitará parecer uma defesa, exceto da honestidade intelectual.
Teólogo, mestre e doutorando em Ciências da Religião e autor da Editora Mundo Cristão