A ideia dessa “mistura”, como diz Bethânia ao Estadão, em entrevista por telefone, surgiu depois que o escritor e professor Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do IMS e responsável pela seleção de textos para o projeto, lhe enviou sugestões sobre o que ler de Clarice, embora a cantora, apaixonada pela escritora, já tivesse lido tudo dela.
Essa relação pensada por Bethânia e alinhavada por Ferraz se dá de forma natural. Em Tabuleiro, a cantora apenas lê os textos. Não há qualquer introdução, explicação ou referência. E eles são intercalados pelas canções, que também recebem o mesmo tratamento. Assim quis Bethânia. Como em seus shows, Bethânia joga sua rede de sentimentos. Cabe ao público, em seguida, recolhê-la.
Ao todo, serão 6 episódios, cada um com um tema diferente, disponibilizados semanalmente, até 9 de dezembro.
Além de Clarice, os demais temas passam pelo Brasil dos modernistas, Caetano Veloso e as traduções de Augusto de Campos, os poemas e as canções de Vinicius de Moraes, Chico Buarque e a poesia de Carlos Drummond de Andrade e, por fim, a poesia portuguesa, que Bethânia ilustrou com fado, ópera e Dalva de Oliveira – três de suas paixões. No papo descontraído com o Estadão, Bethânia falou sobre o programa, Clarice, Nina, Caetano e seu costume de escrever e depois queimar tudo o que redigiu.
Você dedica o primeiro episódio ao Caetano, que te mostrou Clarice e o blues. Que impacto isso teve na sua vida?
Lembro quando Caetano e João Augusto, diretor da Escola de Teatro da Bahia, me mostraram Summertime, com Mahalia Jackson, em um compacto simples. Um mundo novo se abriu. Para mim, essa é a música mais bonita que existe. De uma classe, uma nobreza. Inclusive, as versões (das canções) que escolhi são todas ligadas à minha memória mais bonita de princípio de juventude. Fiquei louca atrás para consegui-las. O mesmo encantamento aconteceu quando li pela primeira vez um conto de Clarice. A verdade dela, a necessidade de existir por meio de sua expressão… Fiquei maluca! Clarice e o blues têm tudo a ver.
Eucanaã (Ferraz) disse que a ideia de juntar Clarice e blues foi sua e que ele, a princípio, não enxergou essa relação. Mas, depois, viu que há de fato uma relação.
Eucanaã levou alguns sustos (risos). Eu queria Clarice no primeiro programa. Só não sabia como iria mexer com as músicas. Quando chegaram os textos, muitos, um dos primeiros que li foi justamente o que abro o programa. Senti que nele Clarice falava da dor dos pretos e sobre o óleo dos cisnes negros que impermeabiliza a pele (ela se refere a um trecho do livro ‘Água Viva’). Entendi que a literatura dela e o blues ficaram do mesmo tamanho, com a mesma verdade, mesma força. Disse: é isso! Misturar Clarice, que eu adoro, com o blues que tenho ouvido muito.
A Clarice e o blues trazem, segundo o Eucanaã, ao mesmo tempo, a dor e a superação desse sofrimento.
Sim. Eles não morrem. Fazem blues para sobreviver. Clarice escreve para sobreviver. É imperativo. Não tem uma escolha.
Seu cantar também é assim?
É. Eu tenho que cantar.
Você conheceu Clarice?
Sim. Não tive grande aproximação. Ela era muito amiga do Fauzi Arap (diretor de teatro). Quando fizemos o show Rosa dos Ventos (1971) ela foi a dois ensaios. E, no dia da estreia, era a primeira pessoa ali, na fileira. Eu sentadinha no palco, dizendo o Poema do Menino Jesus (de Fernando Pessoa), quando abri os olhos, vi Clarice, em close. Quase morri. Ela gostou muito do espetáculo, disse coisas muito fortes.
Ainda sobre o primeiro episódio, na parte musical, há Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Janis Joplin, mas quem abre é Nina Simone, com a canção Pirate Jenny.
Por conta da dramaticidade. A Ópera dos Três Vinténs (de Bertolt Brecht, da qual a canção faz parte) foi o primeiro espetáculo musical que Caetano me levou para ver em Salvador. Me apaixonei pelo teatro. Minha vida mudou. Fiquei enlouquecida com as personagens. Imagina, esse espetáculo foi montado nas ruínas do Teatro Castro Alves, que tinha acabado de incendiar. Lina Bo Bardi fez a cenografia. Era uma coisa inacreditável! Mandei para o Caetano ouvir esse primeiro programa. Ele me escreveu dizendo: “Fiquei muito feliz em a primeira canção ser da Ópera dos Três Vinténs. Foi o primeiro espetáculo que eu te levei para que você entendesse a cidade”.
Você tem uma história com a Nina. Gravaram juntas Pronta pra Cantar, de Caetano, no seu disco de 1990. Como isso se deu?
Um empresário dela ficou encantado com o meu trabalho quando me viu em turnê pela Europa. Ele achava que tinha uma relação com a Nina. Ele insistiu para fazermos algo juntas. Eu disse que, para que eu conseguisse fazer, teria de ser algo mais para meu lado. Eu não falo nem canto em inglês. E cantar com Nina era difícil. Uma musicista extraordinária e uma cantora com estudo e preparações líricas, além de ser negra e cantar blues daquela maneira. Pedi a Caetano para fazer a canção. Nina aceitou. Brava que só ela, mas quis fazer. Ela gravou em Londres e eu aqui no Rio. Tinha medo dela! Já pensou encontrar com aquela figura? Era zangada. Depois, ela escreveu perguntando se podia gravar uma versão toda em inglês para o disco dela, o que não ocorreu porque ela logo deu uma parada na carreira.
Você pode falar sobre o último episódio, dedicado à poesia portuguesa, pela qual você tem muito apreço?
Ô “paisinho” para ter bons poetas! No programa Fernando (Pessoa), mas nem tanto. Queria mostrar a poesia portuguesa não só com o fado. Porém, com a música brasileira, era preciso que tivesse um pouquinho de humor. Então, por exemplo, coloquei Dalva de Oliveira cantando “joguei meu cigarro no chão e pisei” (Bethânia cantarola o samba ‘Pela Décima Vez’, de Noel Rosa). Isso com a poesia portuguesa é meio maluco, inesperado. Essa é a grande graça. A mistura. Tem Amália (Rodrigues) arrebentando, claro. E tem ópera. Escolhi Maria Callas, que é minha paixão, com uma ária de Bizet, e o Pavarotti, que é voz masculina de ópera mais bonita, com Una Furtiva Lacrima, que tem tudo a ver com um poema extraordinário de Eugênio de Andrade.
Nos dias de hoje, neste ano, sobretudo no Brasil, qual a importância da poesia, da literatura – e mais, a relevância de você e Caetano lançarem discos profundos e que estimulem a reflexão?
Resistência. Um chamado para resistir. Esse é o nosso trabalho como artista.
Você escreveu letras de músicas, textos. Escreve sempre? Tem guardados?
Não guardo nada. Escrevo, sim, muito. O que vou sentindo. Escrever me liberta. É igual cantar. Depois, queimo, rasgo, jogo fora. O Waly (Salomão, poeta) brincava comigo dizendo que ia me dar um baú pra eu jogar tudo dentro em vez de queimar (risos).
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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