Nós fazemos e somos os fatos

            A tal civilização contemporânea ama o perigo, adora pisar em terrenos totalmente desconhecidos e tenta deixar a sua marca registrada, quando as coisas dão erradas e quase sempre dão, a culpa é sempre jogada nos ombros daqueles que nada fizeram ou provocaram uma determinada situação, até nos dias de hoje o impossível é possível e isso deixa os ávidos pelo poder suando em bicas, rangendo os dentes, as promessas continuam sendo apenas e tão somente parciais, limitadas e efêmeras. Já deu para perceber que quanto mais se conquista, mais incertezas e medos surgem, o século XXI carrega desde o seu início a marca indelével da incerteza, a intervenção de uns para que todos sejam iguais já está fadada ao fracasso faz muito tempo; a lógica férrea de afastar-se da vida concreta tem se mostrado cada vez mais nefasta, empurrando mais multidões para os precipícios.

            Um campo particularmente perigoso que temos em nosso meio e que ultimamente temos acompanhado com imensa tristeza, é o da guerra, suas múltiplas faces, seus atores sempre cínicos, assassinos, grandes lobbys manipulando a indústria das armas, com razão nos disse no último dia 20/10/2024, Mariana Mazzucato, economista de renome internacional, que “a austeridade é um mito. Pensamos em austeridade quando vemos cortes na saúde e na educação públicas. Na realidade, optamos por gastar mais em algumas coisas e menos em outras. A Alemanha dizia que não tinha dinheiro, mas para a guerra na Ucrânia fez um esforço de 190 bilhões de euros. Onde estava esse dinheiro antes? Para a guerra, o dinheiro surge do nada. Para problemas sociais, não existe”. Essa fala é simplesmente avassaladora, isto é, os promotores das guerras são sim indefensáveis.

            A indústria bélica é sempre uma indústria experimental, manipuladora de vidas que ela julga inferiores ou menores, não deixando de ter características iguais ou piores do que no tempo da Alemanha nazista; a indústria da guerra pensa que tudo pode, acredita que tudo se resolve na força bruta e na morte, a indústria bélica faz da natureza humana e extra – humana um infindável campo de concentração, onde sempre os mais vulneráveis pagam o preço absurdo do mercado infame da guerra. O campo bélico tem sempre os seus marqueteiros de plantão, sempre sedentos por mais conflitos, mais destruição, o caos total, para esses parece que o risco é algo quimérico, fora de contexto e de qualquer propósito, que não seja o lucro; no mais íntimo, o principal artífice desse risco total é apenas o ser humano, ser esse que se desvinculou de si próprio, não sabendo mais quem ele é hoje.

            Não obstante essa catástrofe de esvaziamento de si próprio e do mundo que o cerca, o ser humano deixou para outras formas, uma de suas principais características que é o pensar sobre si e sobre tudo o que o circunda, aquilo que realmente dá sentido para a sua existência, antes o ser da técnica criou um mundo extremamente frágil, isto é, adentrou em mundos que não consegue voltar atrás e muito menos dar uma resposta satisfatória para tal imbróglio. Depois do aparecimento do ser invisível ficou muito evidente que o ser humano se tornou ainda mais inquieto com aquilo que ele mesmo construiu, hoje a inquietude e a incerteza andam de mãos dadas o tempo todo, sabemos bem que durante a epidemia, a indústria da morte lucrou valores estratosféricos com a desgraça alheia, o vírus não foi erradicado, as guerras contra a vida continuam; a banalização está mais solta.

            Bioeticamente, a cura para o mundo e o ser humano está numa revisão profunda de vida de cada um, uma completa análise da caminhada da sociedade, seus acertos e seus erros, principalmente ver os erros do passado e tentar o menos possível replicá-los, o ser humano dominado pela técnica deveria faz tempo ter aprendido essa verdade, mas por razões óbvias não quer e muito menos pretende fazê-lo, cada um de nós de modo muito particular e íntimo deveria se perguntar: “O que deixei de ser, quando me tornei adulto”? “O que diria, caso fosse possível, a criança que eu fui um dia, me encontrasse hoje na fase adulta”? Nosso mundo sempre foi inacabado, mas parece que hoje ele encontra-se em ruínas, seja o mundo individual, coletivo e planetário; seria muito interessante que algumas pessoas ao invés de procurarem sua alma gêmea avidamente, procurassem um psiquiatra.

Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, Mestre em Bioética, Especialista em Filosofia, ambos pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, Doutor e Mestre em Filosofia, professor titular do programa de Bioética pela PUC-PR. Emails: ber2007@hotmail.com e anor.sganzerla@gmail.com

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