Por Rosel Antonio Beraldo e Anor Sganzerla*
Nosso sistema mundo hoje dá mostras que não quer saber de absolutamente nada que venha de outras fontes, que possam lhes trazer desconfortos políticos a curto, médio e longo prazo, por outras palavras, o que interessa ao sistema mundo planetário, é sim o curto prazo entre uma eleição e outra, o que é para ser tratado a médio e longo prazo, que na sua grande maioria são questões vitais de sobrevivência, isso é praticamente ignorado, aqui bem podemos elencar o paradoxo de Olson que nos lembra categoricamente: “ Quanto maior o número, bem como o interesse por determinada causa, menor será sempre o número daquelas pessoas dispostas a moverem céus e terras para implementarem tais causas”; sendo assim, o silêncio é a marca maior do nosso tempo pós ser invisível, ou então, o quanto pior melhor, eis um dos mais tristes capítulos da recente história humana.
Uma personagem que pode auxiliar-nos nesse emaranhado de confusão mental pelo qual todo o Planeta passa é a figura mitológica de Cassandra, filha de Príamo e Hécuba, rei e rainha de Tróia. Cassandra fora agraciada por Apolo com o dom da profecia, mas quando Apolo quis ter ela para si, Cassandra se recusou veementemente, caindo assim em desgraça, noutras palavras, tudo o que ela profetizasse nunca mais ninguém iria acreditar nela. Cassandra foi tida como louca, desvairada, aquela que havia perdido toda a razão e que perambulava por Tróia anunciando seu fim próximo; Cassandra fez de tudo para que o presente (cavalo) enviado pelos gregos fosse destruído antes de ser recolhido na cidade, o que acabou não acontecendo e como consequência veio a destruição total dos troianos; tal mito quando colocado lado a lado com a nossa civilização, ele tem sim muito a ensinar.
O restante da história da belíssima Cassandra se perde nas muitas narrativas a seu respeito, o que não cabe aqui retomar, o interessante é perceber as duas forças presentes no mito, de uma lado a força descomunal de Apolo, aquele que tudo podia fazer, todos obedeciam às suas vontades, Apolo é descrito como um ser predominantemente racional, enquanto que Cassandra representa o conhecimento da vida, aquele conhecimento das pessoas que lutam todos os dias para sobreviverem e que possuem uma experiência não forjada em escola renomada ou num diploma. Apolo abomina tudo o que vem do coração ou é feito com simplicidade, Apolo detesta a opinião que não seja baseada na cientificidade, Apolo não aceita um não vindo de uma mortal, isso o irrita de modo insuportável; Cassandra representa aqueles que vão contra o já estabelecido, o “normal” do qual somos seguidores.
Nessa última semana que se passou, ficamos sabendo por vários meios de comunicação de que as temperaturas no Planeta Terra está se elevando a níveis perigosos, noutras palavras, voltamos ao assunto aquecimento global e mudanças climáticas, dois territórios amplamente desconhecidos por nós seres humanos, nos quais estamos apenas começando a engatinhar, pois até agora todos os esforços feitos foram o de avançar sempre, que toda a natureza seria submetida e ficaria de joelhos perante a vontade irrefreável do ser humano. Cassandra então reaparece na palavra e estudo de pessoas altamente especializadas, as quais já não é possível ignorar ou esconder debaixo do tapete; até mesmo os mais teimosos estão agora mesmo que timidamente olhando com mais atenção para as novas Cassandras, essas vieram para ficar, fazerem parte da nossa vida.
Até agora quem triunfou no espaço e tempo terrestre foi a espécie humana, dotada de inteligência, sagacidade, esperteza, possuidora de quase todos os conhecimentos, procurou por todos os meios ampliar as suas conquistas, raríssimos são os espaços não dominados pelos seres humanos; as mudanças climáticas e a elevação da temperatura são o resultado de muitas ações humanas na Terra, não se pode dizer que apenas uma ação foi ou é determinante para o que aí está acontecendo. É simplesmente incalculável ou mesmo imensurável o que poderá nos acontecer dentro de alguns anos, caso o ímpeto, a falta de modéstia e a ambição fora de controle não sejam refreadas de algum modo, perdemos a noção de responsabilidade perante o Planeta, deliberadamente acreditamos que a razão instrumental tudo pode solucionar; acreditamos demais só em nós mesmos.
Bioeticamente, é no mundo dos vivos que devemos encontrar a melhor solução para os problemas globais que afligem a todos, o futuro é simplesmente imprevisível, inimaginável, sobre ele não temos nenhum tipo de controle, hoje o que se quer é moldar o futuro de acordo com as aspirações humanas e isso tem se revelado um grave erro e em alguns casos uma grande e perigosa ilusão, com consequências colossais sobre tudo e todos. As mudanças tão necessárias para que tenhamos um Planeta saudável, um clima adequado para todos, ou virá pelo amor ou então elas virão inexoravelmente pela dor; um estilo de vida totalmente remodelado por padrões mais comedidos, novos hábitos sadios com menor pegada ecológica, repensar profundamente o que somos, onde estamos e para onde estamos caminhando; Apolo com toda sua razão instrumental não evitou a queda de Tróia, isso mostra que Cassandra com todas as limitações impostas, estava certa, ela continua a nos advertir de que precisamos muito mais do que razão, poder e individualismo.
*Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, Mestre em Bioética, Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR.
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