Eles se conheceram nos EUA. Lá, viveram uma love story parecida com as paixões de melodrama filmadas por Karim. Foram felizes até que Majid voltou para o seu país, em 1965. Karim cresceu sem ele e só foi conhecê-lo quando já tinha 20 anos. Iracema nunca mais se casou. Mas, da memória do que foi vivido, ficou uma caixa de slides. E, agora, um longa-metragem vai nascer dessa caixa. E de uma jornada que, segundo Karim, vem deixando-o “mais educado sobre o que se passa no mundo, lá fora”.
“Peguei um barco em Marselha e fui parar na Argélia, no vilarejo de onde meu pai vem, que é uma região montanhosa, onde neva. Minha mãe morreu em 2015, mas ela está comigo nessa jornada como uma espécie de companheira imaginária. E fui filmando no trajeto, construindo um filme de forma artesanal, que venho editando e espero terminar de montar até julho ou agosto. É uma espécie de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo na Argélia”, diz o cineasta, referindo-se ao longa feito em codireção com Marcelo Gomes que deu a eles o troféu Redentor de melhor direção no Festival do Rio 2009, narrando o périplo pelo Nordeste de um geólogo de quem só se ouve a voz. “Tenho a sensação de que meus filmes são muito coloridos porque as fotos que tenho dos meus pais são retratos em cor. Há uma ausência ali que é cheia de cores. Não apareço nessas fotos porque eu ainda não existia. Minha mãe voltou para o Brasil grávida e eu cresci sendo criado pela minha avó e por ela, que foi uma mulher incrível, com uma história parecida com a da Guida de A Vida Invisível. Guida também volta grávida.”
Nas recordações de Iracema e Majid, Karim encontrou slides deles no Colorado, antes de o pai partir. O título do filme, outrora chamado Argelino por Acaso, virou O Marinheiro das Montanhas por unir os extremos do casal: mar e rocha. “Minha mãe estudava algas. E meu pai vem das montanhas. Ele voltou para a Argélia quando o país dele alcançou a independência. Eles passaram por uma luta árdua para se libertarem da França. Milhares de pessoas morreram, mas eles conseguiram autonomia política. Entre 1962 e 1974, aquela nação foi uma espécie de Cuba da África. Até os Black Panthers foram morar lá”, diz Karim, que também retratou a realidade argelina em Nardjes A., exibido no Festival de Berlim de 2020.
Nele, ao cruzar seu olhar com uma jovem ativista inflamada, em meio à Revolução dos Sorrisos, na Argélia, em 2019, o diretor aplica um de seus filtros autorais: a atenção ao transbordamento de quem é visto como desviante em relação às regras e à moral de sua sociedade. Nardjes é uma ferida viva a céu aberto no moralismo da tradição de sua pátria.
“Ela é uma mulher sábia. Só pelos cabelos enormes que tinha, você vê um contraste com aquele mundo conservador, de onde meu pai vem. Depois que saí de A Vida Invisível, um filme bonito, mas centrado no sufocamento de um ambiente tóxico, eu precisava falar de alegria. E foi aí que essa mulher, a Nardjes, com um projeto utópico forte, apareceu para mim”, disse o cineasta, na Berlinale. “Ainda neste ano, já já, a gente lança esse documentário no Brasil.”
Com a cabeça imersa em seu histórico familiar, Karim passou em revista as vivências (de absoluto sucesso) contabilizadas na década passada ao ser convidado para a mostra Cinema Brasileiro: Anos 2010, 10 Olhares. A retrospectiva, que foi inaugurada no www.10olhares.com e esteve em cartaz (online) na plataforma digital Belas Artes à La Carte, foi arquitetada pelo diretor e curador Eduardo Valente, num bate-bola com dez profissionais da crítica e da teoria cinematográfica, para exibir Praia do Futuro.
A história de amor entre um guarda-vidas brasileiro (Wagner Moura) e um turista alemão (Clemens Schick) rendeu ao diretor uma indicação para o Urso de Ouro. Foi uma de suas consagrações numa década em que foi jurado em Cannes (em 2012); dividiu a direção de um longa em episódios (o documentário Catedrais da Cultura) com Wim Wenders e Robert Redford; e ainda dirigiu Fernanda Montenegro num filme (o onipresente A Vida Invisível, já exibido no Festival de Moscou) que lhe consagrou aos olhos de Cannes, rendendo-lhe loas da crítica americana.
“Os anos 2010 foram especiais não só para mim como para o cinema brasileiro como um todo, porque foi quando a gente pôde exercer o nosso trabalho como um ofício e não como uma aventura, pois existiam leis, havia fomento. A gente sabia que poderia filmar, porque existiam políticas públicas. Nos anos 2000, a gente nunca sabia se haveria dinheiro. Nos anos 2010, havia uma estrutura que, infelizmente, vem sendo desmontada”, diz o diretor, que tem pela frente um compromisso com a ficção, num projeto ligado aos irmãos Gullane chamado Neon River, que compara a saga do casal fora da lei Bonnie & Clyde, ao narrar a fuga de uma jovem nipo-brasileira e de um rapaz franco-argelino, enamorados e em perigo. “Vejo hoje que A Vida Invisível conquistou muita coisa não apenas por suas qualidades, mas pelo resultado de um trabalho de todo um país, feito ao longo da década passada, para poder construir um projeto de cinema. Daí uma década tão diversa.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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