No ensaio Sobre Estórias de Fadas, de 1939, o escritor britânico J.R.R. Tolkien defende a fantasia como forma de arte elevada e afirma que ela é, por sua capacidade imaginativa, um direito humano. No entanto, ele alerta para a necessidade de uma coerência interna nas criações literárias: “Qualquer um que tenha herdado o aparato fantástico da linguagem humana pode dizer o sol verde.
Muitos podem então imaginá-lo ou pintá-lo. Mas isso não é suficiente (…) Criar um Mundo Secundário dentro do qual o sol verde seja crível, compelindo a Crença Secundária, provavelmente vai requerer labor e pensamento e, certamente, vai exigir uma perícia especial”, escreve o autor de obras como O Senhor dos Anéis e O Hobbit.
A capacidade de produzir consistência interna à realidade criada é alcançada por um atributo conhecido no meio literário como “worldbuilding”, ou construção de mundo. É por meio desse mecanismo que, de acordo com Tolkien, a fantasia aspira não à suspensão voluntária da descrença do leitor, mas a um sentimento que ele nomeia Encantamento.
Muitos autores constroem mundos engenhosos em suas obras, como Frank Herbert em Duna, George R.R. Martin nas Crônicas de Gelo e Fogo e Robert Jordan em A Roda do Tempo. Entretanto, talvez nenhum autor tenha se dedicado com tamanho afinco a seu universo ficcional como Tolkien.
Em A Natureza da Terra-média, isso fica evidente. A maior parte do material reunido pelo pesquisador americano Carl F. Hostetter após a morte do filho do autor, Christopher Tolkien, que editava seus originais póstumos desde a década de 1970, não foi escrito para ser publicado, o que resulta em textos áridos, de difícil compreensão.
No entanto, fãs de obras como O Silmarillion que queiram se aprofundar no mundo imaginário de Tolkien certamente se deleitarão ao saber minúcias sobre a passagem do tempo na Terra-média ou ler sobre como os aspectos naturais desse mundo refletem as visões metafísicas de seu autor.
O livro fornece até curiosidades como quais personagens tinham ou não barba – um texto escrito em resposta a uma leitora, mas ao qual o cineasta Peter Jackson não deve ter tido acesso, pois sua fiel adaptação cinematográfica de O Senhor dos Anéis errou nesse quesito.
Leia abaixo a entrevista que Hostetter concedeu ao Estadão por e-mail:
Quão difícil foi unir textos distintos de fontes diversas e dar coerência ao livro?
Grande parte do esforço por trás do que se tornou A Natureza da Terra-média foi ler e analisar o material tardio que Christopher Tolkien me enviou e compreender sua relevância e o que deveria ser feito. À medida que eu percebi a natureza analítica e filosófica que unificava esse material, comecei a associá-los a outros textos de natureza semelhante, tanto publicados quanto inéditos, reunidos por mim ou por meus colegas dos dois principais arquivos de manuscritos de Tolkien, ou de artigos linguísticos que Christopher Tolkien começou a nos enviar em fotocópia nos anos 1990. Então, compreendi que tudo podia ser unificado sob o guarda-chuva do termo “natureza”, em seus dois principais significados: a flora e a fauna do mundo físico de um lado, e as características metafísicas essenciais de outro. Tudo incluído em A Natureza da Terra-média jaz em alguma parte do espectro desses dois sentidos de “natureza”. Esse enquadramento oferece toda a coerência que o livro possa ter.
Que informação inédita desse material mais surpreendeu?
Acho que ninguém poderia ter previsto Tolkien imaginando que haveria apresentações anuais de danças dos ursos de Númenor para seus vizinhos humanos! Eu ainda acho essa uma surpresa saborosa.
De que maneira este livro mudou sua visão sobre a Terra-média?
Era sabido que Tolkien havia se tornado muito mais analítico e filosófico sobre seu mundo subcriado depois de concluir O Senhor dos Anéis, mas os textos publicados em A Natureza da Terra-média fortalecem esse fato e nossa visão de seus processos analíticos e filosóficos e sua visão de mundo. Em particular, ele torna explícita a metafísica católica e especificamente aristotélica/tomística de Tolkien.
A atenção ao detalhe em Tolkien era quase obsessiva. Qual foi o detalhe mais inesperado nestes textos?
Um aspecto surpreendente de A Natureza da Terra-média, em particular de sua primeira parte, Tempo e Envelhecimento, é a preocupação e a habilidade de Tolkien com assuntos matemáticos. Tolkien se esforçou para planejar e calcular as implicações cronológicas e populacionais de vários esquemas das taxas de crescimento e nascimento dos Elfos, sequências de nascimentos entre casais, etc. Estava empenhado em oferecer um período de tempo realista em que tanto Elfos quanto mortais poderiam multiplicar suas populações e (particularmente entre mortais) divergir linguisticamente, dado o que a arqueologia e a linguística nos dizem sobre a pré-história humana. O mais inesperado é o fato de que Tolkien se deu ao trabalho de usar calculadoras eletrônicas para calcular a relação dos segundos convencionais (solares) para os análogos “mínimos” élficos até 360 casas decimais e encontrou onde a sequência de números começava a se repetir!
Por que textos com assuntos tão específicos interessam aos leitores comuns?
O fato é que eles não interessarão a leigos da ficção de Tolkien. Eles interessarão, porém, aos que apreciam ler os pensamentos íntimos de Tolkien sobre o que pode ser chamado de “folclore” da Terra-média (“lore”), como escritos publicados nos apêndices de O Senhor dos Anéis, Contos Inacabados e nos volumes finais da série A História da Terra-média, de Christopher Tolkien, especialmente O Anel de Morgoth e Os Povos da Terra-média.
Há questões relevantes ainda sem solução?
Certamente! Uma das coisas notáveis sobre a subcriação de Tolkien é que ela convida incessantemente a novas questões, algumas das quais o próprio Tolkien responde (ou, ao menos, considera algumas respostas). Mas é claro que, assim como no mundo “real”, nem tudo é respondido e respostas quase sempre dão margem a novas perguntas.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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