No seu livro ‘O Fim do Poder’, o sr. diz que estar no comando não é o que costumava ser, porque o poder está mudando. Como isso afetou a democracia?
Demais. No século 21, o poder ficou mais fácil de se adquirir, mas mais difícil de usar, e mais fácil de perder. Há uma série de forças centrífugas que espalham o poder: grandes corporações, mídias sociais, novas tecnologias. O embate entre as forças centrífugas que espalham poder e as forças centrípetas que concentram poder é uma dinâmica central. Você pode ver que onde o poder importa, esse duelo entre as forças que diluem e as forças que concentram é constante.
O que trouxe o mundo a esse estado? Foi a polarização, as redes sociais, os desafios econômicos, a insatisfação das pessoas com a desigualdade econômica?
É preciso ter cuidado, porque a maioria dessas questões sempre existiu sem criar os problemas que temos na magnitude que temos hoje. Populismo sempre existiu. Populistas existem há tempos imemoriais: demagogos que mentem para seu povo e prometem coisas que não podem ser cumpridas. Polarização é um componente natural da sociedade. Você tem pessoas com visões distintas que duelam com diferentes pontos de vista. Mas a polarização é como colesterol: tem o bom e o ruim. É bom que sociedades tenham visões discordantes de grupos e segmentos de interesse e compitam em favor dos eleitores e ganhem poder. Isso é saudável, que grupos polarizados tenham poder. O negativo é que a polarização deixou de ser democrática e âncora da globalização para uma polarização tóxica, que impede o debate, que é paralisante, impede a sociedade de funcionar e o governo de funcionar. Me mostre uma democracia no mundo hoje, e eu te mostro uma sociedade altamente polarizada. Essa é a novidade.
Por quê?
Bom, são vários fatores. As novas tecnologias, notadamente as mídias sociais. A pandemia agravou muito a situação, mas há outros fatores. Em países em desenvolvimento, especialmente na América Latina, houve um boom de commodities que criou uma benevolência econômica. Então isso acabou, veio uma crise econômica e uma crise financeira seguida por uma pandemia, e a América Latina acabou sofrendo os efeitos dessa parada. Então ficou-se numa situação muito ruim e ficou impossível não culpar quem está no governo pela péssima situação. E aí temos um outro fenômeno que sempre existiu, que antigamente chamava-se propaganda e agora chamam de “pós-verdade”. É essa noção de que tudo é relativo, que não há verdadeiro ou falso, nada pode ser definitivo, as fake news e tudo mais.
O sr. acredita que todas as democracias do mundo estão em perigo hoje com a ascensão dos populistas?
Nem todas. Me recuso a imaginar que a democracia escandinava esteja em risco. Eles têm uma espécie de imunidade cultural a esse tipo de crescimento populista. Você tem de um lado os suecos, dinamarqueses. No outro extremo temos México, Argentina, Brasil, e ainda mais extremos como Mianmar. As democracias têm sido desafiadas seriamente em todo o planeta, mas alguns países têm mais imunidade do que outros.
Mario Vargas Llosa escreveu que, apesar de as democracias estarem em perigo em muitos países, há um “desespero retórico” entre intelectuais e jornalistas. As democracias estão em perigo real ou as pessoas estão exagerando?
Você precisa escolher entre ser alarmista e ser complacente. São dois perigos iguais: você corre o risco de o céu estar caindo sobre sua cabeça e as democracias estarem em perigo e você estar sendo alarmista ou ser complacente e dizer: “Isso já aconteceu no passado e demos conta, está tudo ok”. Eu prefiro cometer o erro de ser alarmista do que de ser um analista complacente que minimize o que está acontecendo.
Como os líderes eleitos podem erodir a democracia?
O mundo está vendo um assalto global aos sistemas de pesos e contrapesos. Quando você fala em ameaças à democracia, essencialmente são os sistemas de pesos e contrapesos que estão sob ataque ou não funcionam, que o Parlamento não é independente e é refém do Executivo. Há o Judiciário, o Parlamento, o Poder Executivo, a mídia, a mídia independente. O que causa a erosão da democracia são esses ataques contínuos aos componentes desse sistema. Alguns desses ataques são abertos, gritantes, cruéis e dramáticos. Outros são praticamente invisíveis, disfarçados, chatos, burocráticos e difíceis de perceber que estão acontecendo, mas estão causando danos iguais.
Como proteger as democracias de ataques daqueles que querem controlar o poder?
Há várias coisas. A primeira é recuperar a narrativa do que é uma sociedade liberal. As forças que estão levando a cabo sua guerra contra os sistemas de freios e contrapesos têm uma história para contar: a narrativa que mina a confiança e a credibilidade da narrativa liberal e os valores das democracias no mundo, liberdade, justiça para todos. Os liberais estão perdendo a narrativa e deixando haver confusão sobre a importância da democracia. Isso tem a ver com a pós-verdade, mídias sociais, fake news. É preciso retomar essa narrativa. A segunda é a guerra pela legitimidade, que é o ativo político mais escasso do mundo. Por isso ditadores organizam eleições e fazem campanhas, mesmo que fajutas. Quando Maduro faz uma eleição na Venezuela, ninguém acredita que aquele processo seja honesto, pois sabem que aquilo é manipulado. Mas eles precisam da narrativa para sustentar sua legitimidade. A legitimidade pode vir da narrativa ou da performance. Um líder que entrega o que promete, que alcança os objetivos e mostra para a sociedade, tem mais legitimidade do que aquele que apenas promete.
A democracia brasileira está ameaçada por esses pequenos passos que podem levar a um caminho final para a autocracia em um futuro próximo?
Muito depende da próxima eleição presidencial brasileira no ano que vem, com um duelo de titãs entre Bolsonaro e Lula. Essa parece ser a tendência. Mas acho que o principal a se observar é como estão os sistemas de freios e contrapesos na sociedade brasileiro. Isso é determinante para saber o que vai acontecer no país.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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