Óperas com protocolos e fina ironia

Com o convite para encenar as óperas Renard, de Stravinski, e Mozart e Salieri, de Rimsly-Korsakov, o diretor William Pereira recebeu do Teatro São Pedro um arquivo com o protocolo de segurança sanitária que deveria pautar o seu trabalho, incluindo a presença de placas de acrílico no palco e a necessidade de distanciamento entre cantores.

“Eu fiquei aflito”, ele lembra. “Eles me explicaram tudo, as limitações necessárias, e eu comecei a pensar em como lidar com essa situação. E a resposta encontrei na poética que costumo usar no teatro: em vez de esconder, é preciso escancarar.”
Por conta disso, antes que a música de Stravinski e Rimsky-Korsakov seja ouvida, o público vai acompanhar a estreia de uma outra obra, batizada de Protocolo de Segurança para Coro e Tenor, escrita por Carlos dos Santos, músico do teatro.
“Eu peguei o texto do protocolo e criei a partir dele um libreto”, conta o diretor. “Virou um prólogo. É uma maneira de registrar o momento, de forma irônica, mas muito clara, esclarecendo para o público que o jogo vai ser esse, precisa ser esse. Eu vejo esse espetáculo, de certa forma, não como uma volta ao palco, mas como um ritual de preparação para uma volta. Com todos os medos, receios, uma mistura de melancolia e alegria muito estranha.”
Renard e Mozart e Salieri serão apresentadas hoje e amanhã e compõem a segunda dobradinha de óperas preparada para este ano pelo São Pedro: a primeira uniu Sócrates, de Erik Satie, e O Marinheiro Pobre, de Darius Milhaud, com direção de Caetano Vilela, que agora assina a luz do espetáculo. Haverá presença do público e o espetáculo será gravado para transmissão posterior pela internet.
Renard (Raposa) é o que Stravinski chamou de “conto burlesco cantado e interpretado”, uma “ópera-balé” de câmara. Inspirada no folclore russo, a obra fala de uma raposa que engana o galo, o gato e a cabra – e carrega uma crítica à religião, com a indicação de que a raposa deve estar vestida como uma freira.
“A raposa simboliza uma ideia de astúcia perversa, é oportunista”, diz William Pereira, que resolveu recuperar a história do nascimento da peça para criar sua concepção. “Ela é uma ópera, mas também um balé, foi escrito para a companhia de Sergei Diaghilev. Por isso, convidei o coreógrafo Anselmo Zola e bailarinos da Studio 3 Companhia de Dança para interpretar a ação”, ele explica.
Para Pereira, se há um elemento, além da língua russa, a unir as duas óperas, é a presença de sentimentos “não tão nobres”. “Estou craque no assunto. Antes da pandemia, minha última peça foi Náufragos, de Thomas Bernhardt, que falava de dois pianistas que tinham profunda inveja de outro artista, Glenn Gould.”
Em Mozart e Salieri, a inveja é aquela que o compositor Antonio Salieri sentia pelo mais novo – e mais genial – Wolfgang Amadeus Mozart. Há, aqui, muito de lenda – a peça de Rimsky-Korsakov é baseada em texto de Alexander Puchkin, um dos primeiros a detalhar a suposta rivalidade entre os dois, que seguiria a ser explorada século mais tarde até chegar ao filme Amadeus, de Milos Forman, que responsabiliza Salieri pela morte misteriosa de Mozart.
A obra coloca os dois compositores no palco. “Ela é quase como um oratório. A ação dramática em si é muito pequena e se resume, de certa forma, ao Salieri. Mozart aparece mais com sua música, com as citações que Rimsky-Korsakov faz de suas partituras.”
Pereira evitou a caracterização histórica ao criar sua encenação. “Não fez sentido para mim, ainda mais dadas as condições do espetáculo, buscar um olhar realista. Eu imaginei dois cantores que chegam ao teatro com suas roupas cotidianas. Um deles recebe uma casaca, outro uma peruca, e pronto.”
Mozart será interpretado pelo tenor Giovanni Tristacci e Salieri, pelo baixo Savio Sperandio. Os dois também cantam em Renard, ao lado do tenor Daniel Umbelino e do baixo Anderson Barbosa. O coro será formado por oito vozes. André dos Santos assina a direção musical.
Reinvenção
Antes de dirigir Renard e Mozart e Salieri, William Pereira assinou a direção de Moto-Contínuo, ópera de Piero Schlochauer que fechou na semana passada a programação do Festival Amazonas de Ópera. O formato foi diferente: a obra não foi gravada no palco, mas, sim, como um filme, em locação.
“É um momento de reinvenção. Ao contrário de muitos colegas, não costumo trabalhar com a tela, com projeções, em minhas montagens. Então, tive que usar a minha experiência como espectador de cinema para dirigir. Mas fiquei muito feliz com o resultado.” O filme pode ser visto no canal do YouTube do Festival Amazonas.
Mas, para o diretor, o trabalho teve um significado ainda mais especial. “O terreno para a ópera no Brasil não tem sido o mais fértil. A ausência de políticas públicas para o gênero, o desconhecimento e preconceito, o fato de que, para muitos, esse tipo de música é restrita ao repertório e à sensibilidade do século 19, tudo isso faz com que ela soe anacrônica e obsoleta para a contemporaneidade, para um mundo de consumo que elegeu o fugaz e o descartável como seus símbolos máximos”, ele diz. “Mas fico menos desesperançoso ao ver um compositor de 23 anos se interessando pelo gênero, e já em sua primeira ópera revelando conhecimento, poesia. Vê-se nessa obra um compositor que domina a escrita musical, as possibilidades da voz humana, a narrativa dramática e que já esboça uma poética muito particular, jovem e original.”

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