Glasgow, se tivéssemos toda aquela coragem necessária diante de tudo aquilo que está acontecendo diante das incríveis mazelas que nos acometem diuturnamente, poderia muito bem ser cada uma cidade que habitamos, em cada uma delas poderíamos realizar o que está sendo feito na maior cidade escocesa, protestar de modo coerente, mostrando os pontos que precisam ser mudados, caso queiramos continuar existindo. Nossa inércia não pode falar mais alto, ela não é a detentora da verdade, não podemos pensar e agir como tudo estivesse perdido, sabe-se que a curto prazo pouco será feito, mas se não for feito, mais curta será a nossa viagem para um caminho sem volta; bem no fundo todos nós sem exceção sabemos que a humanidade precisa frear seus impulsos, falta-nos a coragem, só não nos falta o desejo que aconteça uma mágica, para que tudo fique tal e qual como está.
A impressão que temos no presente é que todos querem que tudo mude, mas nem tudo as pessoas realmente querem que mude, é notório que as pessoas e instituições como um todo tentam por diversas vias contornar as situações, arranjar os mais mirabolantes subterfúgios, a crise viral que continua campeando os quatro cantos do Planeta expôs essa situação de modo inequívoco, mas agora com um elemento a mais: agora, tudo tenta se fazer de modo remoto, estar perto virou sinônimo de perigo, de contágio. Desde há muito o remoto entrou nas nossas vidas sem pedir nenhum tipo de licença, situações corriqueiras das nossas vidas são exemplos concretos do quanto temos nos afastado, há uma tendência em querer mostrar, provar que ser humano é um ser obsoleto, fadado ao fracasso e que os cliques sim são a última ponta do iceberg onde devemos nos agarrar com unhas e dentes.
Na palavra “clique”, precisam ser incluídas todas as tendências que transformam o meio das pessoas e do ambiente em geral, aqui entram em cena muitas utopias que buscam desvincular o ser humano de tudo aquilo que o rodeia e lhe dá suporte para seguir em frente; a história está repleta daquelas tentativas em querer se construir um mundo onde não haja nenhum tipo de incômodo e muito menos sofrimento. Os mais ardorosos defensores de toda e qualquer mudança batem sempre naquela mesma tecla, por outras palavras, que o progresso precisa avançar, que muitas alternativas precisam ser testadas até que se ache a melhor saída para todos, mas qual não é a nossa surpresa quando constatamos que as utopias podem e de fato geram muitas ilusões; apenas uma como exemplo: em 1989, caiu o muro de Berlin, muitos viram aí a criação da nova humanidade.
Desde sempre os seres humanos não aceitaram os seus limites, provas sobre isso não nos faltam, nos primórdios segundo a mitologia grega Prometeu roubou o fogo que era propriedade exclusiva dos deuses do Olimpo, desde então a luta não para, o ser humano buscando transpor todas as barreiras, hoje em pleno século XXI uma corrente chama a atenção de uma parcela considerável da humanidade. Chama-se Transumanismo: seus defensores projetam esperanças infindáveis de que logo teremos uma nova criação que em muito superará os atuais seres humanos. Tais idealizadores tentam mesclar todo tipo de intervenção no humano, indo da memória ao comportamento, da parte física até a criação de ciborgues; numa visão bem sucinta o Transumanismo levanta sérias questões de como tal feito será implementado e quem de fato terá tudo isso e muito mais ao seu inteiro dispor.
Ao lado do Transumanismo, estão girando centenas de outras questões que poderão vir a sofrer impactos de níveis variados, entre esses podemos citar o mundo do trabalho, a saúde, o direito, a mobilidade, a educação, sem deixar de lado o meio ambiente; um cenário de alta complexidade que vem se desenhando deixando muitos pontos de interrogação pelo caminho. Muitos se questionam sobre a eficácia de um melhoramento humano, pois o preço a ser pago ainda nos é desconhecido, hoje sabemos que nem tudo está de fato disponível a todos, sabemos apenas uma ínfima parte do que realmente ocorre; o que está em jogo no futuro do ser humano é sua vida, sua liberdade, bem como a sua consciência como ser vivente numa comunidade, ao se deixar guiar por tentativas de melhoramento, poderá estar assinando um cheque em branco com consequências que lhe escapam ao primeiro olhar.
Bioeticamente, não podemos viver sob o império do medo como querem alguns, temos muitos e bons motivos para ficarmos em alerta, os tempos atuais não são piores nem melhores do que os de outrora; é sim uma época especial para todos, nela não há nenhuma neutralidade como pensam alguns por um viés embaçado; amanhã Glasgow poderá infelizmente ficar apenas na memória e na lista de mais um capítulo recheado de belas e vazias intenções, aumentando assim nossas já grandes vulnerabilidades. Estar de modo remoto numa situação que exige a presença física, não será de grande ajuda, pelo contrário poderá ser um fardo insuportável; nesse momento em qualquer parte do mundo alguém está precisando da nossa ajuda, está necessitando de um prato de comida ou de um emprego, estão mais empenhados em sobreviver do que saber sobre a próxima viagem à Lua. Nossa civilização será julgada futuramente, isso é certo, assim como nós fazemos com outras épocas, bom seria se tal julgamento fosse positivo, isto é, que fizemos algo de bom.
Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, é Mestre em Bioética pela PUCPR, Graduado em Teologia pelo ISTA-BH e Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, Graduado em Teologia pelo Instituto Teológico São Paulo, é professor titular de Bioética na PUCPR.
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