Evandro Marcos Leonardi
A questão em torno ao passaporte da vacina ou passaporte sanitário tem sido assunto digno de muita polêmica. Afinal de contas, perdemos nossa autonomia individual diante da obrigatoriedade da apresentação do atestado ou carteirinha da vacina para ingresso em instituições e demais eventos públicos? A obrigatoriedade do passaporte sanitário fere nossa liberdade individual? No mundo, mais ou menos 100 países tem políticas de obrigatoriedade de apresentação de atestado imunológico, muitos deles prevendo penalidades. A atual polêmica sobre o passaporte sanitário não é nova no Brasil. No início do século XX o Rio de Janeiro protagonizou a conhecida Revolta da Vacina. A varíola perdeu força e a revolta foi “imunizada”. Em pleno século XXI ainda estamos às voltas com essas questões. E agora um ingrediente assume o pivô da argumentação para os contrários à vacinação e ao respectivo passaporte sanitário: a limitação que isso traz às liberdades individuais e à autonomia do sujeito. O tema não é tão simples assim, mas acreditamos que podemos indicar alguma resposta sobre isso. É preciso lembrar que a Anvisa recomendou em 2021 a obrigatoriedade do passaporte sanitário para estrangeiros que aqui desembarcam. O STF deliberou favoravelmente a tal recomendação. O governo Bolsonaro chiou. Atualmente muitos municípios e instituições diversas aderiram à exigência do cartão de vacinas. A polêmica está longe de seu final. A verdade é que com tal medida, as pessoas em geral são induzidas a imunizar-se contra a covid-19 e a cobrança de um atestado acaba por fortalecer a vacinação. Num país que flerta quase 630 mil óbitos, a vacinação é inquestionavelmente um argumento fatual em relação a ausência dos vacinados nas enfermarias e unidades de terapia intensiva de nossos hospitais. Mas e a questão da liberdade individual? Bom, nesse caso, me parece que as constituições e as mais diversas teorias sobre a liberdade moderna convergem para um eixo central de argumentação: sim, temos um espaço de liberdade individual, moderna, importante e irrefutável, mas desde que essa liberdade não atente contra o bem coletivo, de todos. A liberdade individual não pode se presumir maior que a liberdade coletiva. John Stuart Mill, um grande pensador liberal do século XIX assim pensou. Outro pensador, Jean-Jacques Rousseau, ícone para a democracia francesa e de outros Estados que demandaram por uma democracia moderna, analisava que a vontade geral deve prevalecer sobre as demais vontades de natureza pessoal/individual. Mas isso não quer dizer que o indivíduo se fragilize ante tal contexto. Ao contrário, o indivíduo é levado a reconhecer que suas liberdades individuais são assumidas por um todo maior e mais potente, a saber, a coletividade, a comunidade. Nesse contexto, os indivíduos são ainda mais livres pois o poder e a vontade geral são o extrato de todas as vontades particulares. É uma liberdade positiva e que se afirma ao invés de observarmos um indivíduo humilhado diante de uma vontade geral e comunitária. Isso não quer dizer também que estamos permanentemente refreados e limitados em nossos direitos como indivíduo. Mas é preciso entender que as democracias modernas e todos os movimentos sociais modernos a que temos informação são eventos de coletividades, de grupos e comunidades. A liberdade individual é um dos resultados. Não é a liberdade individual que causa a democracia. É a pressão do grupo, da comunidade que assume um protagonismo em relação à vontade personalista do rei, da rainha e demais personalismos. Não vemos como um argumento sobre liberdade individual se presuma inquestionável justamente quando há um contexto de saúde que é pública e geral (de todos). O passaporte da vacina é uma regra de Estado ou de instituição, e assim sendo, expressa um interesse comum. Nesse contexto, vacinar-se contra a covid-19 é, invariavelmente, um ato livre e genuinamente solidário.
Tem experiência no magistério em ciências humanas, com doutorado em filosofia política. É servidor no Instituto Federal do Paraná, Campus Coronel Vivida