Os 110 (ou 112) anos de Adoniran Barbosa
Por Paulo Argollo
O que vale mais? O que está escrito num documento oficial ou a palavra de um homem? Não é um dilema fácil. Ainda mais quando se trata de uma divergência de datas, dois anos de diferença, pra ser mais específico. A certidão de nascimento diz que o sujeito nasceu em determinado ano, o próprio sujeito afirma que nasceu dois anos depois do que consta no documento. E aí, em quem a gente acredita? O caso é que a certidão de nascimento registrada na cidade de Valinhos, interior de São Paulo, atesta que João Rubinato nasceu no dia 6 de agosto de 1910. Já o próprio João Rubinato afirma que nasceu no dia 6 de agosto de 1912, e justifica o erro na certidão dizendo que seus pais, quando foram registrar o nascimento de seu sétimo filho, mentiram dizendo que ele nascera dois anos antes para que ele pudesse logo trabalhar. Portanto, aos dez anos de idade ele já pegava no batente ao lado do pai no serviço de cargas em vagões da São Paulo Railway, quando a lei permitia que crianças trabalhassem à partir de 12 anos de idade.
A existência de Adoniran Barbosa é tão peculiar que até parece que foi mesmo inventada, como se fosse uma crônica tragicômica ambientada na cidade de São Paulo. Fica até difícil conceber que João Rubinato e Adoniran Barbosa são a mesma pessoa. Talvez até não sejam, já que a persona de Adoniran Barbosa foi construída por duas mentes, a de João Rubinato e a de Osvaldo Moles. Mas, calma, a gente chega lá.
Primeiro precisamos saber que João Rubinato tinha o sonho de ser cantor como Orlando Silva, um de seus ídolos. O que ele não tinha de potência vocal e afinação, ele tinha de persistência e bom humor. Em 1931, ele já se mudara para São Paulo com toda a família. Fazia uns bicos vendendo tecidos na rua 25 de Março, mas batia ponto na porta da Rádio Record, onde participava de concursos de calouros e, invariavelmente, era gongado. Chegou a conseguir um prêmio quando desistiu de cantar com voz empostada, como os granes cantores da época, e cantou com sentimento um samba de Noel Rosa chamado Filosofia, isso em 1933. Nessa época, já enturmado com a rapaziada do rádio, músicos e compositores, começou a compor alguns sambas e conseguir algum sucesso, mas sempre compondo para outros artistas interpretarem. O maior destaque dessa época foi a marchinha Dona Boa, que estourou no carnaval de 1934, arrebatando o prêmio de Melhor Marchinha do Ano em São Paulo.
A década de 1930 passa com Adoniran Barbosa compondo muito e tendo alguns êxitos, mas nada muito extraordinário. As coisas só mudariam mesmo em 1941, quando a Rádio Record contrata um jovem jornalista e roteirista muito talentosos, uma verdadeira promessa: Osvaldo Moles. Com apenas 15 anos de idade, Moles já trabalhava numa pequena agência de publicidade. Aos 18 ingressou no jornalismo fazendo parte do legendário Diário Nacional, periódico paulistano muito atuante durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Trabalhou em outros jornais até que, em 1936, foi contratado pela Rádio Tupi. Lá Moles fez uma revolução, criando programas e imprimindo uma linguagem mais popular, falando diretamente com o público. Sem exagero, naquela época a Rádio Record fazia jus ao seu slogan: “A Maior”. Era a mais rica e mais importante rádio de São Paulo. E era inevitável que ela não pegasse para si, em troca de um salário monumental, o talentoso Osvaldo Moles, o que acabou acontecendo em 1941. Naquele ano, Adoniran Barbosa não era contratado da Rádio Record, mas vivia por lá batendo papo e tomando cafezinho com músicos e atores. Logo que chegou, Osvaldo Moles já tinha a ideia de criar um programa humorístico, com esquetes curtas, e viu em Adoniran Barbosa o tipo perfeito para interpretar alguns de seus personagens. Criava-se ali uma parceria das mais prolíficas de que se tem notícia.
Mais do que um contrato e salário fixo como ator da Rádio Record, Adoniran Barbosa ganhou, por causa de Osvaldo Moles, o vislumbre de quem ele próprio poderia se tornar. Foi através dos personagens criados por Moles que Adoniran forjou sua persona, com a qual ficou conhecido: um homem simples, do povo, que fala errado, conhece a periferia e tem muito orgulho disso, além de assumir a alcunha de paulistano por excelência. Em especial, dois personagens foram responsáveis por moldar essa persona de Adoniran: Um era Zé Conversa, um mulato malandro e galanteador que vivia numa favela da Barra Funda. Em determinado esquete, interpelado por nunca trabalhar, Zé Conversa explica: “Pois meu único imprego é achá sarna pra coçá. Meu pai trabaiô tanto nesse mundo que eu já nasci aposentado”. O outro personagem era Giuseppe Perna Fina, um taxista italiano que fazia ponto no largo do Paissandu, no centro de São Paulo. Numa conversa com seus colegas taxistas, ele contou certa vez: “Cês sabem dindindonde que eu tô vindo? Do hospitar! Minha mulher teve que passar por uma intervenção siderúrgica! Ela tinha os cárculo biliar em cima do figo, coitadinha, e teve que retirá!”. Isso tudo deve ser lido com ênfase nos “erres” e com o leve cantado de sotaque italiano, tão comum nos bairros do Bixiga e da Mooca, em São Paulo.
Ao lado de Osvaldo Moles, Adoniran Barbosa se tornou um astro do rádio. Suas interpretações engraçadíssimas, os personagens e os textos bem humorados de Moles faziam um sucesso tremendo. Para embalar algumas histórias, de vez em quando Moles e Adoniran compunham uns sambinhas juntos, e Adoniran adotou aquela linguagem dos personagens também para as suas composições. Tiro ao Álvaro, por exemplo, é parceria de Adoniran e Osvaldo Moles. Nessa pegada, Adoniran escreve um samba lamuriento chamado Que Saudade da Maloca, em 1951, e resolve gravá-lo ele próprio cantando. O compacto com a música é solenemente ignorado por público e crítica. Já desde os anos 30 estava na cara que o forte de Adoniran não era cantar. Em 1949, Adoniran conheceu um grupo de jovens bem humorados e muito talentosos, para quem começou a ceder suas composições para serem gravadas. E foi um sucesso absoluto! O grupo em questão era Os Demônios da Garoa.
Justamente no ano em que Adoniran gravou, sem sucesso, Que Saudade da Maloca, um de seus sambas, na interpretação dos Demônios da Garoa estourou nas rádios, vendendo muitos discos. Era o samba Malvina. Outros sucessos vieram, como Joga a Chave, mais uma parceria de Adoniran Barbosa com Osvaldo Moles na composição. Até que, em 1955, o grupo Demônios da Garoa foi convidado para tocar no programa do Manoel da Nóbrega no rádio.
Antes de o programa começar, o grupo estava ensaiando, se aquecendo. Foi quando começaram a tocar de brincadeira o tal samba da maloca, que o Adoniran escreveu em 1951. Mas a interpretação descontraída dos Demônios da Garoa naquele ensaio deu outro tom à canção. Manoel da Nóbrega, que ouvia num canto, chamou os rapazes e disse: “Se vocês gravarem essa música assim, vai ser sucesso na certa.”. Dito e feito. O pai do Carlos Alberto acertou em cheio. Rebatizada de Saudosa Maloca, a música foi sucesso instantâneo. E a relação entre Adoniran Barbosa e os Demônios da Garoa deslanchou. Sucederam-se sucessos como Samba do Arnesto, As Mariposa, Pafunça, Iracema e tantos outros. Só que a coisa só funcionou mesmo na parceria compositor-intérprete. Rolou uma tentativa de fazer uma turnê apresentando o grupo junto com Adoniran fazendo shows, mas não deu certo. Isso porque Adoniran era um tanto quanto fominha. Queria que os cachês fossem divididos meio a meio. Metade pra ela e a outra metade a ser dividida entre os 5 integrantes do grupo. A parceria nos palcos morreu cedo. Mas Adoniran seguiu compondo para os Demônios da Garoa pro resto da vida, bem como a amizade entre eles foi mantida até o fim.
Saudosa Maloca fez tanto sucesso que inspirou Osvaldo Moles a criar um novo programa humorístico, As Histórias das Malocas. Para este programa, Moles criou um grupo fixo de personagens que viveriam várias situações a cada episódio. Criado especialmente para Adoniran Barbosa, o protagonista era o carismático e malandro Charutinho, personagem que se tornou muito popular e tornou Adoniran Barbosa ainda mais famoso. Em Histórias das Malocas, Osvaldo Moles lapidava sua fórmula de usar o humor para retratar os abismos entre as classes sociais e o racismo impregnado na sociedade paulistana. Para se ter uma ideia, em um dos episódios do programa rolou o seguinte diálogo: “Gerarda: ‘Olha aqui, seu larápio, ocê me pidiu imprestada minha escova de dente e nunca mais devorveu!’ Charutinho: ‘Mais era a única escova de dente que tinha aqui no morro. Eu fiz um espetácro pra izibi ela pá população, e cobrei dois mango pás turma vê o que é que rico usa!’ Gerarda: ‘É, e nunca mais me adevorveu a minha escova de dente, que era legado de testamento do meu pai!’”.
O fim dos anos 50 e começo dos 60 foram o auge de Adoniran Barbosa como artista. Ganhava um salário polpudo da Rádio Record como ator e ainda tinha seus sambas estourados nas paradas de sucesso nas vozes dos Demônios da Garoa. A consolidação desse ápice aconteceu no carnaval de 1964. Já mais velhinho, no começo dos anos 80, Adoniran Barbosa afirmou categoricamente que todas as suas músicas eram sobre coisas que aconteceram com ele ou que ele viu acontecer com alguém. Pois bem, assim como a situação da data de nascimento, como as versões diferentes sobre o Samba do Arnesto, tudo leva a crer que não era bem assim. Afinal, João Rubinato tinha seis irmãos, logo não podia ser filho único. Pra não dizer que ele nunca esteve no bairro do Jaçanã, consta que ele foi até lá 2 vezes ao longo de sua vida, para fazer shows. Nas duas ocasiões, foi de carro, não de trem. Ainda assim, Trem das Onze foi um estouro tamanho que extrapolou São Paulo e caiu como uma bomba na terra do carnaval, o Rio de Janeiro! Contrariando a infeliz afirmação de Vinícius de Moraes, que dizia que São Paulo era o túmulo do samba, Trem das Onze sagrou-se o melhor samba daquele carnaval, ganhando o prêmio de Melhor Samba do Quarto Centenário do Rio de Janeiro. Não dava pra subir mais alto que isso. E a descida seria bem dolorosa para Adoniran. A começar pelo ano de 1967.
Não bastasse o clima tenso causado pela situação política no país após o golpe militar, que instaurou a ditadura no país em 1964, em maio de 1967 Osvaldo Moles comete suicídio. Adoniran Barbosa fica arrasado com a morte do amigo. Pra piorar, alguns meses depois, sem os textos de Moles, o programa Histórias das Malocas sai do ar e Adoniran, sem ter programas onde atuar, acaba demitido da rádio. No começo dos anos 70, Adoniran Barbosa quase não tinha trabalho, ganhava um dinheirinho aqui e ali, com direitos autorais de suas músicas e aparecendo de vez em quando na televisão. Foi quando ele criou o que seus amigos chamavam de boemia vespertina. Adoniran acordava cedo e ia perambulando pelo centro de São Paulo, passava pelo Bixiga, pelo Anhangabaú, parando em seus botequins favoritos para tomar um uisquinho. Depois parava na rádio Eldorado, onde tinha alguns amigos, para bater papo e tirar um cochilo no sofá da recepção da rádio. No meio da tarde, ele já estava fazendo o caminho de volta, parando nos mesmos botequins, até chegar em casa. Numa dessas idas à rádio Eldorado, Adoniran Barbosa é abordado por Milton Miranda, que dizia que Adoniran tinha que gravar um disco solo, cantado ele próprio suas músicas que já eram sucessos consagrados nas vozes de outros artistas. Além de ser um produtor musical de muito talento e sucesso comercial, Miranda era realmente fã de Adoniran. Assim, em 1974, é lançado o primeiro álbum completo de Adoniran Barbosa, cantando com sua voz rouca e castigada pelos mais de 60 anos de idade, muitos desses anos repletos de cigarro e uísque, suas músicas mais famosas. O disco foi um sucesso. Na velhice, Adoniran Barbosa começava a ter o reconhecimento que merecia.
Em 1978 esse reconhecimento da nova geração vem através de seu maior nome na época: Elis Regina. Elis se interessa pela obra de Adoniran, faz uma bela gravação de Saudosa Maloca, e tem um encontro espetacular com Adoniran Barbosa num boteco no Bixiga. O encontro é todo filmado e é antológico. Nele, não só Elis e Adoniran cantam alguns sambas, como saem para passear pelo Bixiga a pé, Adoniran mostrando para ela sua visão de São Paulo. Por fim, eles gravam juntos um samba que Adoniran adorava e que nunca tinha sido gravado. Era uma composição dele em parceria com Osvaldo Moles, feita na década de 50 e que se chamava Tiro ao Álvaro. A música cantada por Adoniran e Elis Regina é um clássico da MPB. Foi lançada no terceiro álbum solo de Adoniran Barbosa, em 1980. Numa triste coincidência, Elis Regina e Adoniran Barbosa faleceram dois anos depois. Ela em janeiro de 1982, aos 36 anos de idade, e ele em novembro de 1982, aos 70, ou 72, anos de idade.
Adoniran Barbosa morreu por complicações decorrentes de um enfisema pulmonar. Nos deixou no dia 23 de novembro de 1982. Nos deixou aqui com a sua vasta e brilhante obra. Uma obra que mescla tristeza e riso, verdade e ilusão. Para ilustrar a capa do terceiro disco de Adoniran, lançado em 1980, o artista gráfico responsável pela capa era Elifas Andreato. Ele próprio conta que inicialmente fez um desenho do rosto de Adoniran maquiado como palhaço, mas com uma cara triste e lágrimas nos olhos. Ele gostou muito do resultado, mas ficou com receio de que Adoniran não gostasse ou interpretasse mal o retrato. Fez um outro desenho também do rosto de Adoniran, mas sem maquiagem, somente com sua indumentária tradicional: chapéu e gravata borboleta. Desenho que foi utilizado na capa. O original do Adoniran com a maquiagem de palhaço acabou ficando nas mãos de um dos diretores da gravadora, que guardou o desenho. Meses depois do lançamento do disco, Elifas recebe um telefone. Era Adoniran Barbosa, que estivera com o tal diretor da gravadora e vira o desenho. Ele disse ao telefone: “Elifas, onde você estava com a cabeça? Eu sou este palhaço triste aqui! Sou eu! E não aquele alemão que você colocou na capa do disco, seu filho da puta!”.
Pra finalizar este texto, que celebra os 110 ou 112 anos do nascimento de Adoniran Barbosa, não posso deixar de contar a história de que eu mais gosto sobre o Adoniran, e que, para mim, o resume com perfeição. Um dos principais parceiros de Adoniran Barbosa no fim da vida foi Carlinhos Vergueiro. O samba de maior sucesso composto pelos dois é o divertidíssimo Torresmo à Milanesa. O samba foi criado de improviso num boteco no centro de São Paulo numa tarde qualquer. Levou meses para finalmente ser gravada. Para cantá-la, Adoniran convidou a grande cantora Clementina de Jesus para dividir a cantoria com ele próprio e Carlinhos Vergueiro. Quando foi concebida, na beira do balcão do bar, Adoniran e Vergueiro cantavam assim o refrão da música que era uma conversa entre trabalhadores na hora do almoço: “O que é que você trouxe na marmita, Dito? Trouxe ovo frito. Trouxe ovo frito. E você, Beleza, o que é que você trouxe? Arroz com feijão e bife à milanesa, da minha Teresa”. Quando foram gravar a música, Vergueiro conta que Adoniran o chamou de lado e disse: “Quando for cantar, não canta bife não. Canta torresmo à milanesa”. “Mas por que isso, Adoniran?” Sorrindo, Adoniran Barbosa disse: “Porque não existe torresmo à milanesa!”. Quando a música já estava sendo gravada, Adoniran Barbosa mais uma vez interrompeu e chamou Carlinhos Vergueiro. Adoniran disse: “Vorta a fitinha, Carlinhos, grava de novo. Quando você for cantar, canta “UM torresmo à milanesa.” “Um torresmo? Mas por que, Adoniran?” E Adoniran respondeu profundo; “Porque é muito mais triste, porra”.