O diálogo que parece extraído de algum filme nonsense foi uma das situações vividas pela baiana durante entrevista para vaga de balconista em uma lanchonete de Salvador. “Logo depois, ela (a recrutadora) falou que não precisaria mais, pois a vaga já tinha sido preenchida por uma menina magra, toda no padrão”, completou. Aos 41 anos e com 140 quilos, a feirante diz sentir na pele o impacto do preconceito no mercado de trabalho.
A gordofobia pode-se entender como a discriminação contra um indivíduo por conta do seu peso, e essa forma de preconceito também não é nova. Pesquisa desenvolvida pelo Grupo Catho – empresa que funciona como um classificado online de currículos e vagas – em 2005, intitulada A Contratação, a Demissão e a Carreira dos Executivos Brasileiros, realizada junto a 31 mil executivos, identificou que 65% dos presidentes e diretores de empresas tinham alguma restrição na hora de contratar pessoas gordas.
Ainda conforme os dados do estudo, o mercado pagava melhor aos magros. Pelos cálculos, cada ponto a mais no Índice de Massa Corporal (IMC) – medidor internacional de obesidade adotado pela Organização Mundial da Saúde – de um funcionário significaria, para o gerente, a perda de R$ 92 por mês.
“Alguns anos atrás, fui chamada para uma entrevista para ser governanta em uma casa de luxo. Quando cheguei, a dona olhou, olhou, olhou e disse: ‘você não se enquadra’. Ela nem procurou saber se eu tinha as qualificações”, prosseguiu Kátia. Sem oportunidades, partiu para a atividade informal e vende roupas na internet. “Me sinto bem discriminada, porque não sou incapaz de fazer nada daquilo. As pessoas ficam criando obstáculos, nem param para olhar minhas experiências só porque sou gorda.”
Conforme a Pesquisa Nacional de Saúde, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2020, 60,3% dos brasileiros com 18 anos ou mais – o que correspondia a 96 milhões de pessoas – estavam acima do peso em 2019. Além disso, o estudo constatou que a proporção de obesos na população com 20 anos ou mais no País passou de 12,2% para 26,8% entre 2003 e 2019. Já pesquisa realizada em 2017 pela Skol Diálogos, em parceria com o Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística (Ibope), mostrou que 92% dos brasileiros admitiram sofrer com gordofobia no convívio social.
Para a psicóloga e especialista em transtornos alimentares Gabi Menezes, a discriminação às pessoas gordas no ambiente de trabalho causa marginalização. “Ela não se sentirá pertencente e os impactos psicológicos dessa violência afetam não só a saúde mental, mas muitas vezes também a física. Quando pensamos na saúde mental, podemos listar ansiedade, estresse, depressão, sentimento de negação, inadequação e até transtornos alimentares”, descreveu.
Nesse sentido, uma forma de proteção seria a terapia. “É essencial entender que o problema de uma sociedade gordofóbica não está nela (pessoa), mas, sim, na própria sociedade. Fundamental é fortalecer a sua autoestima física, mental e intelectual, pois é uma falha na estrutura que faz com que esta pessoa seja vista como desleixada, preguiçosa e pouco apta”, ressalta Gabi.
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No Brasil, não existe lei específica para punir quem pratica gordofobia. Entretanto, a Constituição Federal tem como princípios fundamentais proteger a dignidade de qualquer pessoa. “No mercado de trabalho, a gordofobia pode ser interpretada como assédio moral, seguindo assim os trâmites já pré-estabelecidos. Em casos de humilhação, as ofensas podem ser interpretadas como injúria, crime contra honra, previsto no Código Penal, o que também possibilita recursos judiciais para sua defesa”, explicou a advogada Rayane Souza.
Ao lado da colega Mariana Oliveira, a pós-graduada em direito digital criou a página do Instagram Gorda na Lei, que presta auxílio contra a gordofobia. “A ideia sempre foi trazer de maneira muito dinâmica e acessível a informação sobre direitos básicos, que muitas pessoas ainda desconhecem, e dar atenção para essas pautas com a relevância que merece ser debatida”, explicou. Rayane destacou ainda que a pessoa gorda precisa entender que seu direito como ser humano não é questionável e que as garantias estão previstas na Constituição Federal e nos demais ordenamentos.
“O corpo gordo é capaz e esse paradigma tem que ser rompido com urgência. As empresas devem ampliar suas visões de mercado e entender que somos plurais. Isso traz muito mais benefícios do que continuarmos insistindo em padrões e rótulos. Hoje, quem não investe em diversidade e representatividade fica para trás, além de correr um grande risco de sofrer juridicamente com eventuais situações de preconceitos”, reforça.
Ações propositivas
Ao deslocar o olhar para as pinturas produzidas até o século 19, os corpos retratados eram volumosos e rotundos, pois ser gordo era sinônimo de saúde, beleza e nobreza. Contudo, a partir de 1830, surge um novo marco na visão estética, privilegiando a magreza. Com o avanço das tecnologias, anúncios de imagens das “novas belas mulheres” apareceram e nortearam os pensamentos da sociedade pré-industrial.
Na obra O Império do Efêmero: a Moda e Seu Destino nas Sociedades Modernas, de 1989, o filósofo francês Gilles Lipovetsky sintetizou: “As pessoas preferem assemelhar-se aos inovadores contemporâneos e menos aos seus antepassados”. Junto a isso, as pesquisas científicas passaram a decretar o excesso de gordura como antítese de saúde.
Diante desse novo padrão, as pessoas gordas passaram a ser vistas como “preguiçosas, descuidadas e propensas a mais problemas de saúde”. Por conta disso, entrar e permanecer no mercado de trabalho, para muitos deles, é uma batalha que vai além das qualificações técnicas exigidas. Frases como “você não se encaixa no perfil que procuramos” ou, ainda, “sinto muito, a vaga já foi preenchida” já estão no cotidiano desta parcela da população.
“A gordofobia no mercado de trabalho é uma realidade a partir do momento que se olha para o lado e não se percebe nas empresas a representatividade com pessoas gordas”, apontou Matheus Santos, CEO da Escutaqui, psicólogo comunicador de diversidade e inclusão com foco em gordofobia.
“A gordofobia é muito velada e disfarçada com preocupação com a saúde. É fácil se esconder nessa justificativa da ‘saúde do outro’, mas ninguém diz que vai deixar de contratar alguém porque fuma. Então, será que é realmente uma preocupação com a saúde?”, provoca. Experiente como gestor de recursos humanos, ele atenta que a mudança desse pensamento só será efetiva quando empresas trouxerem políticas que visem tornar o ambiente acessível.
“Devem refletir se o espaço de trabalho é adequado a todo mundo ou se alguém teria dificuldade em passar nas catracas da entrada, se os uniformes servem em toda equipe, se a cadeira irá quebrar e causar um constrangimento enorme. A pessoa gorda não pode ser considerada só quando ela emagrece”, afirma.
Com o intuito de qualificar a pessoa gorda, ajudando-a a criar conexões e trazendo alternativas para colocação no mercado de trabalho, funcionando como rede de apoio, a turismóloga Carol Vayda criou o Meu Trampo+. “Buscamos fomentar a qualificação profissional, mas também dar ferramentas para os participantes enfrentarem a gordofobia”, explica.
O projeto voluntário consiste em uma série de treinamentos ministrados por profissionais de diversas áreas, que visam capacitar, treinar e acompanhar a pessoa gorda durante a busca por uma vaga. “Já tivemos uma temporada presencial e outra online em que falamos sobre empreendedorismo, vendas, nutrição, criatividade, marketing digital e redes sociais”, prosseguiu.
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