A reportagem passou a semana ouvindo podcasts e podcasters ligados ao universo da música já identificados pela seleção natural das plataformas digitais como gestores de alguns dos canais mais instigantes desta ainda primeira geração. São experiências relativamente recentes e completamente diferentes entre si, não apenas em seus conteúdos, mas também em seus formatos. E é aqui que começa a graça da história: apesar de feitos de maneira muito semelhante e abrigados nos mesmos hospedeiros, os podcasts são ambientes flexíveis que se moldam à alma de quem o faz.
Javier Piñol é diretor do Spotify Studios para a América Latina e para o mercado latino-americano dentro dos Estados Unidos. Ele usa a expressão “renascimento do áudio” para definir ao Estadão o que vem acontecendo nos últimos 15 anos. “Durante a última década e meia, o que vimos e ajudamos a conduzir foi um renascimento do áudio. O streaming mudou fundamentalmente este ecossistema com a redução das barreiras de entrada e a democratização do acesso ao áudio em todo o mundo. Ter mais ouvintes na nossa plataforma cria mais oportunidades para que os artistas e podcasters possam viver do seu trabalho.”
Atento à maior migração de músicos, jornalistas e produtores de conteúdo em direção a podcasts que tratem de assuntos ligados ao negócio principal do Spotify, a música, Piñol conta que a companhia respondeu à demanda criando uma funcionalidade chamada Música+Papo, na qual é possível interagir com o acervo musical da plataforma e ouvir canções em meio às conversas sem problemas de licenciamento. “Foi uma resposta à procura. Artistas e criadores são capazes de fazer seus programas utilizando o catálogo do Spotify com mais de 70 milhões de músicas.” Além disso, produções originais, como o sucesso Mano a Mano, no qual Mano Brown recebe personalidades tão díspares quanto o ex-presidente Lula e o doutor Drauzio Varella, são apostas maiores da empresa.
Mas, para além das estratégias de uma única companhia, a ambiência dos podcasts, que já tem sido chamada sem razão de “o novo rádio”, segue tendo suas lógicas definidas, sobretudo, por quem os faz. Até agora, eles, os podcasts, podem ser classificados em três categorias empíricas: há os programas conduzidos por um único apresentador, bem produzidos e editados com rigor; os programas apresentados por dois condutores, com um roteiro, algum grau de improviso e um formato aproximado da entrevista; e os projetos mais livres, com dois ou mais participantes em total clima de improviso e, praticamente, nenhuma edição. Se as audiências apontam que um jeito pode ser melhor do que o outro? Pinõl diz que não: “Existem muitas maneiras de contar histórias que servem para entreter, educar, desafiar, inspirar ou nos unir e quebrar barreiras culturais. Podcast é um formato e dentro dele cabe tudo que quisermos e o que ainda nem pensamos em fazer”.
O jornalista Ricardo Alexandre conduz uma das séries mais bem-sucedidas deste histórico. Confinado em casa durante a pandemia, ele criou, há um ano, o Discoteca Básica, um projeto de podcasts semanais que se tornou um dos musicais mais acessados no País. “Eu precisava de algo naquele momento que eu pudesse fazer sozinho”, conta. Em formato de audiodoc, cada programa narra a história de um grande álbum do rock, nacional ou de fora, mas com pesquisa, texto elaborado, ritmo, boa captação de voz, fala de convidados comentada e trechos de música. Ou seja, muito trabalho.
Ricardo sentiu para onde soprava o vento e tomou a direção contrária. “Até então, o que imperava era o formato mesa-redonda, tudo bem-humorado e sem edição – e bons podcasts podem ser assim. Mas eu pensava em oferecer algo diferente em termos de conteúdo.” Sobre o ritmo compassado de sua locução, quase uma quietude dentre o falatório geral, ele diz: “Você se lembra de quando a 89 FM estreou? Ela era um ponto fora da curva com relação à locução estridente das outras emissoras. Eu quis propor a mesma ruptura que senti ali”. Hoje coprodutor do Discoteca ao lado de outro podcaster, Guga Mafra, ele monetiza sua invenção com dois anunciantes por programa e um clube de apoiadores que assinam o canal e recebem conteúdos exclusivos.
Organicidade
Se os melhores projetos ligados à música devem nascer orgânicos, o Taradas por Letras, da cantora Letícia Letrux e da jornalista e poeta Leilah Accioly, está no bom caminho. Ele nasceu das longas e ininterruptíveis mensagens pelo WhatsApp sobretudo enviadas por Leilah a Letrux. “Eu ouvia e dizia que tínhamos de fazer nosso podcast. Aquilo, na verdade, já era um podcast”, diz Letrux. “O programa nasceu da afinidade profunda entre duas pessoas”, fala Leilah.
Seu formato é o de bate-papo estabelecido com leveza e densidade, de pouca roteirização, mas com assuntos centrais sempre relacionados às letras de música. Os dois primeiros episódios falaram das canções que remetem aos amores adolescentes nas letras de bandas como Pearl Jam, Bon Jovi, Alanis Morissette, Eurythmics e Legião Urbana. Já nos dois lançados neste mês de setembro, entraram no foco as canções com versos que retratam a sociedade do cansaço. A mesma de Byung-Chul Han, o filósofo sul-coreano autor do termo e do livro. Sim, Byung-Chul Han no mesmo episódio que Camisa de Vênus cantando Só o Fim. “É muito bom conseguir realizar o casamento de cultura pop com algo mais profundo, mais reflexivo”, diz Leilah.
Uma das melhores mesas musicais está sendo conduzida há um ano pelo trio B3, formado pelo apresentador esportivo Benjamin ‘Benja’ Back, o produtor musical João Marcello Bôscoli e o jornalista e pesquisador André Barcinski. A reunião que já está em seu episódio número 51 prima pela falta absoluta de roteiro e nenhuma edição. “O Benja manda a mensagem na noite de quarta perguntando: ‘E aí, meninas, qual vai ser o tema de amanhã?'”, diz André. E se mudar, estraga. As conversas têm ritmo, bom humor, histórias saborosas e uma curadoria rica que surge em meio a assuntos como filmes sobre música, bandas que criaram visuais icônicos e o que faz um produtor. “O conhecimento dos dois é surreal, e eu tenho de popularizar o negócio”, diz Benja. É fato. Em meio às memórias enciclopédicas de João e André, o despudor de Benja ao dizer “não faço ideia do que vocês estão falando” chama o ouvinte mais incauto a sentar-se à mesa com eles. É o botequim fechado que os podcasts estão reabrindo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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