Ao mesmo tempo, os principais aliados ocidentais da Ucrânia também possuem armas atômicas, o que significa que o conflito pode, no limite, colocar potências nucleares umas contra as outras, caso a violência transborde as fronteiras ucranianas.
Como explicou o diplomata brasileiro Sérgio de Queiroz Duarte, que foi alto-representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento, em uma entrevista ao Estadão, as duas principais potências nucleares – Rússia e Estados Unidos – já vinham mantendo suas forças nucleares em elevado nível de alerta. Putin, porém, inaugurou uma retórica mais direta e assustadora. “Desde a crise dos mísseis de Cuba, em 1962, o mundo não se via em perigo tão grave de uma conflagração com o uso de armas nucleares como agora”, disse ele.
Analistas militares acreditam que o maior risco no momento na guerra na Ucrânia envolva o uso de armas nucleares táticas na Ucrânia. Essas bombas, com capacidade menor do que as lançadas pelos Estados Unidos no Japão em 1945, não são regidas por tratados internacionais e têm como objetivos alvos específicos e menores. Apesar disso, a radiação emitida por elas pode fugir do controle e atingir outros países. Especialistas temem que a Rússia tenha menos receio de empregá-las na Ucrânia.
Para Sarah Bidgood, diretora do programa Eurasia do Centro de Estudos de Não Proliferação James Martin Center (Califórnia, EUA), é difícil estimar o nível do risco de a Rússia usar uma arma nuclear tática na Ucrânia, mas, para ela, está claro que Moscou confia nesse arsenal para obter vantagens militares num cenário desfavorável. “A Rússia pode introduzir armas nucleares em um conflito quando sentir que se esgotaram suas opções convencionais e que enfrenta uma ameaça existencial”, explica.
Com arma nuclear tática, guerra pode sair do controle
Armas nucleares táticas são, pelo menos em teoria, projetadas para serem usadas como parte de um plano de campo de batalha. Isso não significa uma redução nos seus efeitos. Alguns tipos têm rendimento variável, o que permitiria que seu poder explosivo fosse calibrado para um ataque específico; outras, apelidadas de “bombas de nêutrons”, foram projetadas para espalhar radiação com apenas uma explosão mínima.As ogivas “táticas” são diferentes das ‘estratégicas”, que têm uma capacidade destrutiva enorme, capazes de dizimar cidades inteiras.
Além de tamanho e rendimento, a principal diferença está em como elas são usadas. Uma arma estratégica é projetada para atacar com poder devastador dentro de um grande plano de guerra. Esse tem sido o medo nuclear tradicional em Washington e Moscou – um cenário de apocalipse nuclear ao estilo do retratado pelo filme Dr. Fantástico (Stanley Kubrick, 1964).
Apesar disso, muitos especialistas discordam de que haja realmente uma distinção clara entre armas nucleares táticas e estratégicas, porque mesmo as armas táticas emitem níveis perigosos de radiação. Além disso, seu uso pode fazer com que o outro lado retalie com bombas do mesmo calibre e a situação fuja de controle. Este, reiteram analistas, seria o maior risco de um confronto nuclear.
“A única missão das armas nucleares, definitivamente nesta guerra, é matar muitas pessoas ou mostrar que você está disposto a escalar e matar muitas pessoas. Ponto. Não há mais nada”, escreveu Pavel Podvig, especialista sobre as forças nucleares da Rússia no Instituto das Nações Unidas para Pesquisa de Desarmamento, no Twitter.
Rússia tem maior número de ogivas táticas
Muitos países, incluindo os EUA e a então União Soviética, investiram pesadamente em armas táticas durante a Guerra Fria. Tanto Washington quanto Moscou reduziram unilateralmente seus programas nucleares após a queda da União Soviética.
Um tratado de controle de armas, chamado New START, negociado pelo presidente Barack Obama e pelo então presidente da Rússia, Dmitri Medvedev, em 2010, limitou os dois países ao arsenal de 1.550 ogivas nucleares em mísseis balísticos e bombardeiros. No entanto, as armas táticas menores não são regidas por este acordo, nem por qualquer outro acordo internacional. Acredita-se que a Rússia tenha uma enorme vantagem com relação a elas.
Um relatório divulgado em fevereiro pela Federação de Cientistas Americanos descobriu que a Rússia tinha um estoque de aproximadamente 4.477 ogivas nucleares no total. Desse número, cerca de 1.588 eram ogivas estratégicas que haviam sido implantadas, enquanto 977 estavam armazenadas, mas prontas para uso. A Rússia tinha cerca de 1.912 ogivas não estratégicas que, segundo o relatório, também estão em armazenamento central, embora a Federação observe que esses locais de armazenamento podem estar perto de bases com forças operacionais (outras 1.500 ogivas foram consideradas aposentadas, mas ainda “em grande parte intactas”).
Os EUA, por sua vez, têm 1.644 armas nucleares estratégicas implantadas, bem como 100 armas táticas implantadas na Europa. Tem mais 1.984 ogivas armazenadas – das quais 130 são táticas.
No final da década de 90, enfrentando problemas econômicos que deixaram seu exército tradicional em frangalhos e o impasse militar humilhante com líderes separatistas na Chechênia, os líderes russos pareciam ter reorientado a tecnologia nuclear.
Um blefe de Putin?
Muitos observadores da política russa veem um padrão na retórica agressiva de Putin. Ela consistiria no lema “escalar para desescalar”. Em um relatório divulgado no início de março, o Serviço de Pesquisa do Congresso americano descreveu essa suposta doutrina:
“As declarações russas, quando combinadas com exercícios militares que pareciam simular o uso de armas nucleares contra membros da Otan, levaram muitos a acreditar que a Rússia poderia ameaçar usar suas armas nucleares não estratégicas para coagir ou intimidar seus vizinhos”, afirmou o relatório do Serviço de Pesquisa.
Adam Mount, diretor do Projeto de Postura de Defesa da Federação de Cientistas Americanos, disse que a fraqueza dos sistemas de armas convencionais da Rússia pode explicar a dependência potencial de ameaças nucleares, um perigo que a CIA também levantou em abril. “As armas nucleares são ferramentas dos fracos”, diz Mount.
Demonstrações de força
Nenhum país usou armas nucleares em uma guerra desde que os EUA lançaram duas bombas nucleares no Japão em 1945. No entanto, autoridades russas fizeram comentários repetidos sobre esse armamento, como o anúncio de Putin que havia colocado as forças de dissuasão nuclear da Rússia em alerta.
A Rússia também exibiu novas tecnologias de mísseis durante a invasão da Ucrânia, incluindo um míssil balístico lançado do ar chamado Kinzhal, que pode viajar em velocidades hipersônicas, bem como míssil de cruzeiro de longo alcance.
Ambos são considerados de capacidade dupla, disse Mount, o que significa que podem transportar uma arma convencional ou uma ogiva nuclear – um problema significativo para os militares ocidentais, pois eles podem não saber que é um ataque nuclear até que um exploda. Mas até agora não há sinal de que a Rússia tenha retirado suas ogivas táticas do armazenamento, acrescentou Mount.
Bidgood disse que classificou o risco de armas não estratégicas na Ucrânia como baixo, mas crescente.
“Putin parece se sentir confiante de que pode usar ameaças e sinais velados para aumentar e diminuir a escala para atender às suas necessidades”, disse Bidgood, falando no início do conflito. “Mas esse é um jogo muito perigoso e que pode facilmente levar a falhas de comunicação e interpretações erradas.”
Risco real é menor, mas existe
Para Mount, o temor do uso de armas nucleares na Ucrânia supera em muito o risco real de que isso ocorra, pelo menos até agora, mas ele lembra que, acuado, Putin é perigoso. “O risco aumenta à medida que Putin fica mais desesperado, mas o fato é que o uso nuclear não o ajudaria a vencer a guerra ou faria Washington abandonar Kiev”, disse Mount.
Não está claro como os Estados Unidos responderiam se a Rússia detonasse uma arma nuclear tática. A Ucrânia não é um aliado da Otan e a aliança não está obrigada por um tratado a protegê-la. Mas, nos bastidores, autoridades americanas garantem que a resposta seria dura.
Em 2017, o então general da Força Aérea John E. Hyten se opôs à ideia de que as armas nucleares táticas estão realmente em uma categoria diferente de uma arma nuclear estratégica. Hyten, que na época supervisionava as armas nucleares dos EUA como chefe do Comando Estratégico dos EUA, descreveu como os EUA poderiam responder se outro país as usasse.
“Estados Unidos responderão estrategicamente, porque aí teriam cruzado uma linha, uma linha que não é cruzada desde 1945”, Hyten disse. (COM AGÊNCIAS INTERNACIONAIS)
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