Parreira recebeu a reportagem no condomínio onde mora para falar de futebol brasileiro, de seleção e de Copa do Mundo. E criticou a intenção da Fifa de realizar o Mundial a cada dois anos. “Vai tirar toda a graça dessa competição”, avaliou. “É a expectativa de quatro anos que deixa todo mundo ansioso por ela.”
Aos 78 anos, o ex-treinador diz que agora procura apenas desfrutar do esporte que o consagrou. Ele assiste com frequência aos jogos do Brasileirão, da Premier League e do PSG. Vacinado com três doses contra a covid-19, ele também procura aproveitar ao máximo o tempo livre. “Fico com a família, quando posso vou para a minha casa em Angra ficar dois dias, passear de barco. Minha vida é de aposentado mesmo”, comentou. A conversa com Parreira durou cerca de uma hora e foi interrompida uma única vez por uma ligação. “É da minha neta. Essa eu não abro mão de atender.”
Confira os principais trechos:
ESTADÃO – A Fifa tem um projeto para realizar a Copa do Mundo a cada dois anos. Como o senhor avalia?
PARREIRA – Sou muito tradicionalista: quatro anos é o ideal. Você tem a preparação de uma Copa, que você ganhou ou perdeu, e você tem as Eliminatórias, que aqui para o Brasil dura um ano e meio. De dois em dois anos vai tirar toda a graça dessa competição. O bacana é você desfrutar quando você ganha, e se preparar quando você perde. Ano que vem já tem outra Copa, eu já fui a dez. Parece que foi ontem! É um formato consagrado, e se mudar para dois em dois anos vai perder toda a essência, vai ficar muito banalizado. Eu sou contra. Pode agradar no aspecto político e econômico, mas eu nem sei se agrada todo mundo. A Conmebol e a Europa são contra. O único aspecto interessante é o financeiro, e acho que nesse caso não tem que ser levado em conta o aspecto financeiro. Vou repetir: de dois em dois anos vai banalizar a Copa do Mundo, vai ficar uma coisa muito comum. É essa expectativa de quatro anos que deixa todo mundo ansioso.
Um dos argumentos da Fifa para isso envolve as Eliminatórias – os europeus reclamam que os jogadores precisam viajar muito para os jogos do Brasil. O senhor considera que o formato das Eliminatórias Sul-Americanas é um problema?
É ultrapassado. Não tem como você fazer 18 partidas em um ano e meio. Quando nós classificamos para a Copa de 1994, eram cinco seleções num grupo. Então você fazia oito jogos, e em dois meses resolvia tudo. Brasil e Argentina eu sei que estão querendo mudar o formato, mas não interessa à Bolívia, à Venezuela e a outras equipes. Acho que o formato está errado, não ajuda em nada, você perde tempo e no final você já sabe quem irá se classificar. Deveria voltar àquele formato de grupos de cinco.
Em 2026 a Copa do Mundo já será com 48 participantes. Como o senhor vê esse aumento?
Vai agradar ao lado político, mas não vai melhor em nada a qualidade técnica da Copa. Mais equipes vão participar, o interesse é muito grande… Tem uma coisa boa, que na fase de grupo os piores já saem. Trinta e duas seleções é um bom número. Quarenta e oito, eu não consigo imaginar. São 48 torcidas, 48 centros de treinamento, hotéis para 48 seleções, transporte… Olha só a dificuldade! É inviável. Num país grande, como Estados Unidos, Brasil, ou a própria Alemanha, que é bem estruturada, até vão tirar de letra. Mas não é todo mundo que consegue organizar uma Copa. Também não sei se tem interesse técnico: vão classificar sete (entre os sul-americanos), não precisa mais nem de Eliminatória.
O senhor considera que o calendário do futebol brasileiro atrapalha a seleção? Ou vice-versa, que a seleção atrapalha o futebol brasileiro?
O calendário é o maior desafio dos dirigentes do futebol brasileiro. Tivemos uma comissão lá na CBF [em 2016], que eu participei junto com o Carlos Alberto (Torres), Ricardo Rocha, Dunga, Cafu. Ficamos alguns meses estudando, fizemos reunião, tentamos elaborar alguma coisa, mas o máximo que nós conseguimos foi na Copa do Brasil, na fase inicial, tirar um jogo. O lado político é muito forte. Eu dizia nas reuniões que são três pilares o calendário: o lado técnico, o lado financeiro e o lado político. O cara que conseguir conciliar esses três fatores é um gênio, porque não tem como. Se você vai privilegiar o lado técnico, perde no financeiro e no político. No Rio de Janeiro (Estadual) são 18 datas. Você perde três meses quando poderia deixar para o Campeonato Brasileiro ser mais espaçado, para a Copa do Brasil, para a própria Libertadores. Não é que a gente seja contra (os Estaduais), eu participei e acho maravilhoso. Agora, os grandes clubes poderiam entrar só na etapa final, com oito datas. É um campeonato deficitário, você perde dinheiro, perde tempo. O calendário é um problema muito sério e difícil de ser equacionado. E tecnicamente acaba prejudicando. Os clubes treinam muito pouco e jogam demais. Se você observar os números de jogos que se faz no Brasil e na Europa, é de 30% a 40% a mais aqui. E tem ainda os deslocamentos, aeroporto, cinco, seis horas de viagem. É um desgaste danado. O calendário é complicado, alguém teria que ceder, mas ninguém quer ceder. Nenhuma federação quer ceder.
Mudar a ordem dos campeonatos, talvez colocando os Estaduais para o segundo semestre, poderia ajudar?
Teve uma vez em que um presidente de um grande clube, numa dessas reuniões, falou assim: “mas eu não posso acabar com o meu campeonato, porque a cidade tal fica um ano todo esperando que a gente vá jogar lá”. Então, para atender àquela cidade, você sacrifica todo um campeonato. Esse lado político tem um peso muito grande. Nenhum presidente, nenhuma federação, quer ceder. A gente não quer acabar com o Regional, nem pode, porque é muito bacana ter um Fla-Flu, o campeonato de São Paulo é muito forte, tem Minas, Porto Alegre, no Brasil todo esse regionalismo é muito grande. Mas tem que diminuir as datas, concentrar mais.
Em termos de futebol de seleções, o senhor tem visto alguma inovação tática, de sistema de jogo, ou é mais do mesmo?
A grande transformação no futebol aconteceu na Copa de 1966. Até aquela Copa se jogava e se deixava jogar; os defensores só defendiam, o meio de campo só organizava, e os atacantes só atacavam. A partir daí mudou tudo, foi o grande marco: joga e não deixa jogar. Marcação sob pressão, perdeu a bola já vai marcar, o ponta-esquerda perdeu a bola já vai pegar o lateral direito. A intensidade, a participação de jogo, mudou tudo a partir da Copa de 1966. Naquela ocasião a equipe inglesa começou num 4-3-3, terminou a Copa num 4-4-2, que se consagrou e é o esquema mais usado no mundo até hoje. Isso aí já esgotou, não tem mais para onde mexer. É um 4-4-2, é um 4-3-2-1, um 4-3-3. O importante é que as equipes joguem como um todo, compactadas, defendendo e atacando com a máxima eficiência. Eu vejo o campeonato inglês, a Premier, e fico impressionado com a intensidade do jogo deles.
Quem o senhor considera como técnicos de maior destaque?
É muito difícil analisar talento, mas eu gosto muito do Guardiola, por tudo o que ele fez no Barcelona. Eu conversei com ele algumas vezes, gosto muito do trabalho que ele faz. E está provando que é muito bom, porque fez isso na Espanha, na Alemanha, e está fazendo na Inglaterra. Eu vi um treino dele, quando eu era coordenador na seleção, com o Felipão. Ele não fica de braços cruzados, ele participa o tempo todo! Fiquei impressionado, mas não é por acaso que os times dele jogam bem. A participação dele é muito ativa. Têm treinadores muito bons, mas ele para mim é o destaque. Gosto muito do Alex Ferguson também. E, aqui no Brasil, para mim o top é o Zagallo. Não posso deixar de falar do Zagallo, porque ele foi pioneiro. Quando ele assumiu o Botafogo em 1967, 68, foi bicampeão carioca, e por isso foi para a seleção. E em 1970, tudo o que as outras seleções começaram a fazer, o Zagallo já fazia. Ele é um visionário, na maneira de jogar, de comandar as equipes, de se posicionar. Eu realmente admiro muito o Zagallo, e não falo por ele ser meu amigo. É só olhar para as conquistas dele.
Nas suas épocas de seleção era razoavelmente fácil marcar jogos com seleções europeias, mas hoje é quase impossível. Isso atrapalha?
Atrapalha, o Tite estava falando isso, que só vai pegar europeu quando chegar Copa do Mundo. Antes nós fazíamos excursões uma vez por ano, jogávamos cinco partidas na Europa. Pegava Inglaterra, Alemanha, França, Hungria… Você tinha esse contato, via como era o futebol, a velocidade, a marcação, como eles jogavam. Isso faz muita falta, esse intercâmbio é bom. E é bom para os dois lados. O Tite com toda razão se lamenta.
O fato de não conseguir jogar com europeus inviabiliza que se compare de fato o nível da seleção brasileira? Porque por aqui temos a Argentina, mas a própria tabela das Eliminatórias mostra que não temos outros adversários…
Não tem, não tem. A diferença é muito grande, o Brasil sobra. O único grande adversário é a Argentina, sem dúvida nenhuma, que ganhou a Copa América. A única seleção que pode enfrentar o Brasil é a Argentina, os outros jogos não têm referência pra gente. Falta muito esse intercâmbio com os europeus, mas tem que ser antes da Copa, não na Copa.
Vai haver uma janela com datas Fifa entre o fim das Eliminatórias, em março, e a Copa do Mundo, que acontecerá só no fim do ano. Ainda será válido um enfrentamento com europeus, ou estará muito em cima?
Ajuda, claro que ajuda. Talvez até por ser antes da Copa eles tenham interesse em enfrentar o Brasil, porque quando o interesse é deles você consegue. Eu, se fosse técnico de Inglaterra, Alemanha, Portugal, eu iria querer jogar contra o Brasil antes da Copa. Marcaria um jogo contra o Brasil, para sentir um jogo com uma equipe sul-americana, que é diferente. Jogando entre eles é uma coisa, mas jogando contra um Brasil, uma Argentina, muda muito
Mas uma derrota num jogo desses não poderia causar um abalo na confiança?
Não deveria, não deveria. A gente tem que analisar que é preparação, que é treinamento. Por exemplo, antes da Copa de 1994 fizemos uma preparação longa, de um mês, de 35 dias antes de a Copa ser iniciada, lá nos Estados Unidos. O primeiro jogo (preparatório) foi contra o Canadá, e o que nós sofremos… A gente não estava preparado, era o primeiro jogo depois de quase um mês de treinamento. Começamos devagar, depois fomos nos soltando, enfrentamos a Costa Rica… Chegamos na Copa bem, mas porque fizemos cinco jogos antes. Ritmo de jogo é importantíssimo. É preciso pelo menos três jogos antes do Catar, mas aí contra europeus, ou dois europeus e um africano, mas com seleções que vão à Copa.
E em termos de futebol brasileiro, como o senhor avalia o nível atual?
Tecnicamente, acho muito bom. Quando você tem o time do Flamengo completo, o time do Palmeiras, Atlético, São Paulo com jogadores jovens, tecnicamente é muito bom. É que a gente tem uma overdose de futebol. Você joga três, seis, nove jogos num mês. É muita coisa. Tem um desgaste natural, mas eu acho que o nível técnico é muito bom. Habilidade igual à nossa… Eu vejo a Premier, o campeonato alemão, um pouco do francês por causa do PSG, que é um time diferenciado, mas a qualidade técnica não é igual à nossa. Você não vê um drible, uma tabela, uma jogada individual, ou vê muito pouco. Isso aí continua sendo o nosso grande forte, a criatividade, essa capacidade de criar coisa dentro de campo, um drible, uma tabela, um passe de calcanhar, uma balançada, uma finalização rápida.
O que espera da final da Libertadores entre Flamengo e Palmeiras?
O Flamengo completo é um time para ser respeitado. Flamengo é bicampeão da Libertadores, se tiver o time completo… E o Palmeiras é um time muito bem armado, muito compacto. O Abel está fazendo um bom trabalho, é um time que tem camisa, que tem história. É um jogo que eu não diria que tem favorito não, é um jogo equilibrado. Palmeiras, como equipe, é muito boa, e tem jogadores que podem decidir. E o Flamengo completo, com Gabigol, Bruno Henrique, com Arrascaeta, fica um time imparável.
Nos últimos anos temos visto gigantes do futebol brasileiro penando na Série A e mesmo na Série B. O Cruzeiro está indo para a terceira temporada na B, o Vasco está com dificuldades para subir. Santos e São Paulo passaram por um período difícil e só agora parece que afastaram risco de queda, enquanto o Grêmio não consegue sair do Z-4. Por que isso acontece?
De longe é difícil analisar, mas eu acho que a infraestrutura é fundamental, além da gestão e do poder econômico. Tudo isso tem uma influência muito grande, mas não basta só ter o dinheiro, tem que ter alguém que administre. Alguém que invista no clube, na estrutura do clube, no planejamento, nos treinamentos, no CT. Não é só ter a camisa, ter o nome, ter a história. Não adianta, hoje é trabalho, organização e planejamento. É preciso também formação de base, não tem outra saída. Esses clubes, em algum momento, falharam num desses fatores. O Grêmio não é para estar na posição que está pela história, pelo poder que tem e pelo que representa no futebol brasileiro. Mesma coisa o Vasco, o Cruzeiro, que tem uma história belíssima. O Cruzeiro tem instalações, tem estrutura. Está faltando alguma coisa na gestão.
Estamos a um ano da Copa: o que o senhor pretende fazer quando ela chegar?
Eu não tenho um plano. Nas últimas dez Copas eu participei, eu fui, mas não ficaria triste se fosse ficar aqui em casa, vendo daqui. Sério mesmo. É muito bacana estar ali, vendo os jogos ao vivo, mas se eu ficasse em casa desta vez eu não iria ficar zangado, não. Sempre tem um convite de última, mas é muito compromisso… Se for pra desfrutar, aproveitar, ver, escolher… Não tenho planos, não.
Para finalizar, o que o senhor tem feito? Segue pintando quadros, fotografia…?
É isso aí, e pegando neto no colégio. Semana que vem viajo para ver minha filha nos Estados Unidos e meus netinhos que estão lá. Estou desligado do futebol, não tenho mais nenhum compromisso. De vez em quando faço umas palestras lá na CBF, mas não tenho mais nenhum compromisso. Fico com a família, quando posso vou para a minha casa em Angra ficar dois dias, passear de barco. Minha vida é de aposentado mesmo. E eu mereço: depois de 45 anos chega um momento em que a gente continua gostando de futebol, adorando futebol, mas o dia a dia do futebol é que mata. Aquela rotina… Tem que mudar, e eu acho que mudei na hora certa.
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