Os trabalhadores se revoltam contra o aumento de preços e do achatamento salarial. Saem às ruas em protestos e paralisam o funcionamento de uma fábrica. As manifestações são duramente reprimidas pelo exército. Muitos manifestantes morrem, impõe-se o silêncio à população e o toque de recolher é decretado. O sepultamento dos 26 corpos é feito em segredo. O terror espalha-se pela cidade.
O filme é feito em preto e branco, como se o veterano Andrei Konchalovsky (84 anos, 22 longas no currículo) quisesse lhe dar o aspecto de um documentário, uma espécie de cinejornal relatando um fato histórico lamentável de um regime autoritário.
No entanto, o cineasta se vale de um expediente ficcional para relatar esse caso verídico. Lyudmila (Yulia Vysotskaya), membro do comitê da seção municipal do Partido, é devotada seguidora da memória de Stalin. Considera-o o homem de aço, um herói de guerra injustiçado, líder de um regime onde tais coisas (preços altos e greves) não aconteciam. Ela briga até mesmo com o pai, um veterano com ideias próprias, e nada simpáticas em relação a Stalin e sua herança.
Acontece que Lyudmila tem também uma filha adolescente, Svetka (Yulia Burova), envolvida com os protestos. Durante as manifestações, ela desaparece e a mãe, desesperada, passa a procurá-la por todos os lados. A certa altura, Svetka é dada como morta pelas autoridades. Mas Lyudmila não se conforma e vai à luta, ajudada – paradoxalmente – por um agente da KGB destacado para participar da repressão aos grevistas.
Essa estratégia ficcional permite a Konchalovsky contemplar vários aspectos da questão – o que torna o filme complexo e nada maniqueísta.
Permite, em primeiro lugar, acompanhar a trajetória de um quadro do Partido, Lyudmila, no caso, da fé cega e completa na sabedoria do Partido e das autoridades a uma consciência mais crítica em relação à história e ao presente do seu país.
Depois, quando se tornar mais claro quem foram os responsáveis pelo massacre, o filme destaca a existência de um conflito entre o exército e as forças de segurança representadas pela famigerada KGB. Para adicionar nova camada de complexidade à trama, será um desses agentes o parceiro de Lyudmila na tentativa tanto de conhecer o paradeiro da filha quanto de encontrar os responsáveis pelo crime.
Num primeiro momento se tem a certeza de que foram os soldados que dispararam contra a multidão. Teria então o Exército Vermelho identificado no povo soviético o seu “inimigo interno”, para usar o jargão de algumas republiquetas latino-americanas? Nada mais improvável. O Exército Vermelho, criado por Trotski, era visto pelos soviéticos como defensor do povo contra ameaças externas e não seu opressor.
Há, pois, uma dissonância cognitiva a alimentar a tensão dessa trama. O excelente trabalho da atriz Yulia Vysotskaya dá peso e consistência a esse dilema histórico e político.
Konchalovsky parece estar em ótima situação para fazer a revisão dos anos Kruchev, através desse episódio particular. É um cineasta internacional. Fez seis longas-metragens na antiga União Soviética, entre eles um festejado Tio Vânia, adaptação da peça clássica de Chekhov. Foi para o exterior, radicou-se nos Estados Unidos, continuou a filmar, e só voltou ao seu país com a dissolução da União Soviética em 1991.
Trouxe o olhar crítico afiado pelos anos no exterior. Mas, a julgar por este Caros Camaradas, não trouxe na bagagem o olhar ressentido muitas vezes presente em artistas obrigados a seguir carreira fora de seus países de origem.
Caros Camaradas mostra DNA russo em estado puro. Filmado no país e interpretado por elenco local, falado em russo e afinado com dilemas políticos de um povo de história grandiosa e muito tumultuada. É crítico, porém empático. Esse belo filme recebeu o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza do ano passado. Reconhecimento justo a uma história de amor entre mãe e filha no contexto de tragédia política produzida por um regime autoritário.
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