Em Mapinguari, fica claro desde o início o conflito entre tradição e progresso, saberes ancestrais e tecnologia de ponta, floresta e cidade. José é o filho de seringueiro que, ao ir para o ambiente urbano, passa a trabalhar com a compra e venda de terras da comunidade em que nasceu. Iludido pelo discurso de que ninguém é obrigado a vender sua terra e de que a transação pode ser boa financeiramente para os proprietários, ele passa por uma grande transformação quando se vê obrigado a voltar para o vilarejo de sua infância quando seu pai adoece.
DESCENTRALIZAR
Narrativas como essa, que se passam nos rincões amazônicos, ainda têm pouca visibilidade para o público dos grandes centros urbanos. É por isso que, para o autor André Miranda, desbravar esse cenário é fundamental para conhecer nosso próprio país. “Acredito que a importância é justamente a de descentralizar as narrativas que consumimos. Existem muitas boas histórias no Brasil, mas infelizmente a maioria das narrativas que acabam se tornando filmes e livros ainda se centra no eixo urbano do País.”
Para o ilustrador Gabriel Góes, nascido em Brasília, houve todo um processo de pesquisa para retratar uma comunidade seringueira no interior do Acre: “O que mais tive em mente na elaboração do Mapinguari foi a busca por uma atmosfera autenticamente brasileira, elementos comuns não só para quem vive na floresta, mas, também, em cenários urbanos. Detalhes agora invisíveis para nós, como o cafezinho, o filtro de barro e a novela, foram algumas das referências mais significativas”.
O romance gráfico tem apoio da ONG ambiental suíça WWF, que forneceu um auxílio precioso para que a HQ pudesse reproduzir a essência de um cenário tão singular. “Eles ajudaram na pesquisa fornecendo fotos, vídeos, entrevistas e informações sobre os seringueiros, suas gírias, costumes, ferramentas, técnicas de extração da seringa, vegetação local e minuciosos detalhes sobre a vida na floresta”, conta Góes.
PESQUISA
Para compor a narrativa, Miranda também mesclou pesquisa e experiência: “Algumas coisas tirei de vivências minhas, das vezes em que fui para a floresta ou de experiências pessoais que cabiam dentro da narrativa”. Uma trama relevante, sobre a compra de lotes de terra, veio justamente de sua pesquisa. “O fato de os seringueiros não possuírem até hoje um direito mais concreto à posse da terra que ocupam e como isso os torna presas fáceis dos grileiros que chegam lhes oferecendo dinheiro vivo – algo concreto – pelas terras, acabou se tornando o fio condutor da narrativa.”
No entanto, para contar essa trama densa, Miranda e Góes se apoiam em mitos, como o mapinguari, monstro protetor da floresta, e em elementos de fantasia. “A confusão entre realidade e sonho, o delírio, é um assunto recorrente nos meus quadrinhos e a alternância sensorial acabou se tornando uma das minhas mecânicas favoritas para se realizar em narrativas gráficas”, explica Góes. “No caso do Mapinguari, além de ser uma história sobre três gerações de uma família de seringueiros, também estamos falando sobre os monstros dos mitos e os da vida real.”
Para Miranda, uma HQ a respeito de uma comunidade ainda pouco abordada pela cultura pop brasileira é um indicativo do interesse crescente por novos pontos de vista. “Apesar do fortalecimento do conservadorismo nos últimos anos, acredito que há no mundo todo uma busca por maior representatividade das narrativas, um cuidado maior com como representar minorias ou determinadas comunidades nas histórias. Infelizmente, na maioria das vezes, essas comunidades eram representadas de uma forma muito rasa, preconceituosa. Então para mim foi um desafio enorme e uma espécie de ‘regra de ouro’, de escrever uma história sobre aquele lugar, para aquelas pessoas de uma forma mais aprofundada, em que elas realmente se vejam naqueles personagens, e não apenas como um autor que está abordando um lugar e sua cultura ‘porque aquilo é curioso’.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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