Com a nova lei que possibilita a transformação de clubes em empresas no Brasil, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em agosto último, o cenário se tornou mais propício para investidores. E atraente para países endinheirados do Oriente Médio, como o Catar, que entraram no mercado do futebol, após períodos de grande crescimento em função da descoberta do gás natural e da exploração do petróleo.
O futebol brasileiro passou a ser um mercado em potencial dentro de uma estratégia do Catar de se promover para o mundo. É natural, com isso, que o possível investimento seja direcionado a um clube grande e não a alguma agremiação para crescer em longo prazo, conforme afirma o ex-técnico René Simões, que trabalhou em várias ocasiões no Catar, entre 1990 e 2006.
“Se eu conheço um pouco da personalidade do xeque (Tamim bin Hamad al-Thani) e de outros membros da família real, eles vão investir em um clube grande. Querem ganhar. Não querem projeto para cinco anos. Tem de ser um clube com repercussão internacional. Na França, por exemplo, eles foram em uma equipe de porte local, o PSG, buscando justamente títulos e conquistas internacionais”, diz.
Simões aponta três clubes que se encaixariam neste tipo de projeto, principalmente porque passam por sérias crises financeiras: São Paulo, Santos e Cruzeiro. “Pensando com a cabeça deles, eu compraria o São Paulo, tricampeão mundial com excelente estrutura e que está precisando muito de investimentos. É uma pena ver o São Paulo, uma referência anos atrás, nesta situação. O Santos é outro nome fantástico para esse tipo de projeto. Já vem ligado ao nome de Pelé, que seria, mesmo sem assinar nada, um investimento agregado muito interessante. O Cruzeiro também tem uma boa imagem por lá, é um clube que está em uma situação difícil e tem uma grande torcida”, acrescenta.
Simões pertence à legião de treinadores brasileiros que participaram da estruturação do futebol no Oriente Médio desde os anos 1970. Era uma época em que a infraestrutura local era precária, conforme ele conta. Sua primeira experiência foi em 1982, quando ele trabalhou nos Emirados Árabes Unidos.
“Os treinos eram feitos em um campo de terra. O estádio tinha uma grama sintética, mas ainda sem oferecer as melhores condições de jogo. Jogava-se até de tênis. Hoje a situação é outra, principalmente com o enriquecimento destes países a partir do petróleo e do gás natural. Os estádios são maravilhosos, há dinheiro jorrando, a infraestrutura é excelente. A Copa do Mundo de 2022 será referência neste sentido”, observa Simões.
Outro brasileiro que trabalhou no país é o ex-técnico da seleção brasileira, Sebastião Lazaroni. Ele foi treinador no Catar entre 2008 e 2016, tendo dirigido a seleção local em 2011. Lazaroni vê o interesse ressaltado por Guedes como uma forma de o governo do Catar demonstrar toda a sua paixão pelo futebol brasileiro, após ter dado, no futebol europeu, o primeiro passo na gestão de um clube. “A família real adora futebol, o xeque, pelo que sei, é vascaíno. Acredito que o Vasco e o Cruzeiro são alguns clubes que poderiam despertar o interesse deles no momento”, destaca.
Lazaroni também considera que qualquer investimento do Catar terá como objetivo o resultado em curto prazo. “Qual clube iria sair de uma situação de poucos títulos e dificuldades econômicas, como PSG, para se tornar uma potência continental em menos de 10 anos? É isso que eles querem no Brasil. Essa é uma maneira deles se inserirem no mercado, por meio do futebol, uma paixão que eles levam a sério”.
No Oriente Médio, a busca por mercados por meio do futebol era um objetivo em comum, segundo Lazaroni. “Os técnicos brasileiros, em conversas, ajudaram a abrir esse caminho no futebol. Havia interesse em realizar uma Copa do Mundo no Oriente Médio como um todo. Mas diferenças políticas acabaram tornando isso inviável hoje”, diz.
Na região, cuja hegemonia é disputada por Irã e Arábia Saudita, o governo saudita liderou um bloco, em que se incluía os Emirados Árabes, que passou a boicotar o Catar em 2017, com bloqueio econômico e fechamento de fronteiras, prejudicando a economia do país. A acusação era de que o Catar estava dando apoio a grupos terroristas ligados ao Irã. O bloqueio foi encerrado em janeiro último e o Catar, neste momento, tenta recuperar o terreno e o dinheiro, perdidos.
Também os Emirados Árabes têm se inserido no futebol. Desde 2008, o país controla o Manchester City e, a partir da experiência bem-sucedida, abriu uma empresa para gerir clubes do futebol pelo mundo, o City Football Group (CFG).
MODELO DE GESTÃO – O ministro Guedes fez a afirmação durante viagem da comitiva do presidente Jair Bolsonaro ao Oriente Médio, em 20 de novembro último, com o objetivo de realçar o interesse catari em investir no Brasil, inclusive por meio do fundo soberano do governo local, a Catar Investment Autorithy (QIA).
O fundo busca inserir o Catar no mercado internacional, diversificando as parcerias comerciais, para além de negócios com gás natural e petróleo, que no momento representam mais de 60% das exportações do país.
Para tanto, o país está utilizando o futebol também como uma estratégia diplomática, tentando se desvincular da imagem de ditadura rígida com o poder centralizado em uma família. “Vejo a estratégia do Catar como uma tentativa de criar ‘soft power’ positivo. Ou seja, criar uma imagem positiva e usufruir dessa boa imagem. Não creio que se projete lucro na atividade especifica do futebol. Essa também foi a estratégia do russo Roman Abramovich na aquisição do Chelsea”, afirma o economista Denis Rappaport, mestre pela Duke University (EUA).
Braço esportivo da QIA, a Catar Sports Investments (QSI) adquiriu o controle do Paris Saint-Germain em 2011 e, desde então, investiu mais de US$ 1,4 bilhão (cerca de R$ 7,8 milhões) na contratação de estrelas como Neymar, Messi, David Beckham, Edinson Cavani, Zlatan Ibrahimovic, Kylian Mbappé, Sergio Ramos e Angel Di Maria.
Nestes dez anos, o clube conquistou sete campeonatos nacionais e seis títulos da Copa da França, além de ter chegado pela primeira vez à final da Liga dos Campeões, em 2020.
O modelo do City é diferente do utilizado pelo PSG. O CFG, holding controlada pelo fundo soberano de Abu Dabi, Emirados Árabes, tem como negócio apenas o futebol. Já o QSI investe também em esportes como o handebol e o judô, tendo contratado, em 2017, o tricampeão olímpico Teddy Riner.
Para Rappaport, o Catar entraria no Brasil seguindo um modelo semelhante ao do CFG, dos Emirados. “Provavelmente a forma de investimento seria pela separação do departamento de futebol de outros setores dos clubes. Assim, seria criada uma empresa responsável pelo futebol que passaria a ter todos os direito econômicos e deveres ligados a esse departamento”, completa.
No futebol brasileiro, muitos torcedores apegados à tradição costumam se opor a esse tipo de investimento. Rappaport, concordando com Lazaroni e Simões, acredita que isso não ocorreria em clubes que passam por crises financeiras. “Quanto à resistência dos torcedores, é por isso que eu acredito que eles entrem em grandes clubes em crise financeira. Nesse sentido, o dinheiro do Catar será visto pelos torcedores como uma tábua de salvação e não haverá resistência e sim orgulho”, completa.
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