Em 17 de junho de 2021, foi ao ar Katla, primeira série islandesa com produção original da Netflix. Baltasar Kormákur assina a direção e divide a cocriação com o escritor e produtor Sigurjón Kjartansson. O excelente roteiro é assinado por Davíð Már Stefánsson e Lilja Sigurðardóttir, e conta com colaborações dos criadores.
Katla é um vulcão situado no sul da Islândia cujas erupções ocorrem em intervalos de 50 a 80 anos. É coberto parcialmente pela geleira Mýrdalsjökull e se situa a leste da geleira de Eyjafjallajökull. O povoado mais próximo se encontra ao norte e se chama Vík í Mýrdal.
Na série, Katla entrou em erupção e Vík precisou ser evacuado. Em meio a um oceano de cinzas, restam apenas alguns resignados. Um evento agrava a situação: o aparecimento de uma estranha nua, coberta de cinzas, que se identifica como Gunhild (Aliette Opheim).
A protagonista Gríma, interpretada pela artista e cantora Guðrún Ýr Eyfjörð, torna-se uma das principais investigadoras dos enigmas que passam a emergir no povoado. Por quê? Porque sua irmã Ása (Íris Tanja Flygenring), morta há um ano, reaparece nas mesmas condições. A infância das irmãs, marcada pelo suicídio da mãe, é representada em flashbacks respectivamente pelas atrizes Agata Árnadóttir e Kolfinna Orradóttir.
Além do abalo produzido por essa “ressurreição”, o mecânico Þór (lê-se Thor, interpretado por Ingvar Sigurdsson), pai de Gríma e Ása, ainda precisa se haver com dois fantasmas do passado, ambos ligados à jovem Gunhild e a uma personagem que vem da Suécia para reencontrá-lo. Ela também se chama Gunhild, e é mãe do jovem Björn (Valter Skarsgård).
As investigações são lideradas pelo geólogo Darri (Björn Thors). O delegado Gísli (Þorsteinn Bachmann), envolvido em dramas pessoais com a esposa Magnea (Sólveig Arnarsdóttir), acaba sendo mais um antagonista do povoado do que um aliado nas elucidações. O espectador deve dar atenção especial a Bergrún (Guðrún Gísladóttir). Depois de viajar o mundo, a dona do hotel Vík se dedica a rituais arcaicos. É um ponto cego da narrativa. Tem uma função oracular (fornece pistas sobre os enigmas).
Uma das prioridades dos gigantes do streaming tem sido o multiculturalismo: produções inspiradas em narrativas, personagens e culturas autóctones de cada país. Nesse sentido, Katla segue na linha de sucessos recentes como Cidade Invisível (2020), série criada por Carlos Saldanha a partir do folclore brasileiro.
A ideia governante (Robert McKee) e o mito (Northrop Frye), orientadores de Katla, estão entre o folclore e a ciência. Chamam-se changelings, entidades da cultura islandesa. Representam o mitema (Lévi-Strauss) mais amplo das “crianças trocadas”, presentes nos contos de fadas e em outras culturas. Segundo a crença, as crianças de fadas ou de trolls (desestabilizadores) são trocadas por crianças humanas de fisionomia idêntica.
Jón Árnason (1819-1888), escritor e diretor do Museu Islandês de Reykjavik, foi um dos primeiros compiladores desses contos nos dois volumes de Lendas Islandesas (1862, 1864). Tanto ele quanto o folclorista norte-americano Dee Ashliman ressaltam um aspecto dos changelings: sua personalidade não muda. Esta e outras características desses duplos (Doppelgänger) são destacadas na série, sobretudo por Bergrún.
Contudo, o folclore adquire mais complexidade quando unido à ciência. Darri descobre que as entidades são “fabricadas” por um elemento (ou uma inteligência) extraterrestre ativado pelas erupções. O meio-fio entre natural e sobrenatural, entre crença e ciência, entre o vulcão Katla e o cosmos se esgarça e se torna cada vez mais tênue.
Um dos motivos de maior debate entre os fãs que já se movimentam na internet diz respeito ao fim. A “troca” relativa de Gríma e o “jogo” que esta estabelece com seu changeling fecham de modo misterioso a primeira temporada.
Embora a segunda temporada ainda não tenha sido confirmada pela Netflix, este fim indica que a orientação deve ser um embaralhamento cada vez maior entre as almas-corpos dos humanos-changelings. Se Katla apostar nesse caminho de tensão entre ciência e mito, o espectador pode esperar não apenas pela segunda, mas por algumas temporadas de uma narrativa audiovisual de alta qualidade.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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