O clube está perdendo uma longa disputa judicial com a multinacional Saint-Gobain, dona da área. No dia 5, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou um recurso do clube contra a integração de posse do terreno pedida pela multinacional. O prazo para desocupação é 7 de agosto. Ainda existem chances remotas de um recurso ao Superior Tribunal de Justiça, mas o Santa Marina provavelmente vai deixar de existir. A área de 9.236 metros quadrados, nas proximidades do campus da Unip, na avenida Marquês de São Vicente, vale aproximadamente R$ 86 milhões.
“Desde seu início, ele (o clube) depende da liberalidade da Saint-Gobain no que se refere ao uso precário da área (em comodato) e se submete aos interesses desta proprietária”, escreve o desembargador Elói Estevão Troly, relator do processo na 15ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Como presidente do clube, Francisco coça os cabelos pensando no que vai fazer com uma das salas de troféus mais bonitas da cidade, além de paredes forradas com fotos que percorrem mais de 100 anos de história. Na primeira passada de olhos, o Estadão encontra um troféu grande com a data 1943 quase apagada. É o título da Liga Esportiva Comércio e Indústria (Leci). Uma foto de Pelé, com a camisa do clube sendo autografada, fica logo na entrada. Orgulho.
“Acho que vamos guardar os troféus em várias casas da família. Se ficar aqui, tudo vai se perder”, lamenta o dirigente, que também pretende pedir ajuda do Museu do Futebol, um dos espaços mais importantes da cidade para a preservação da memória do futebol de várzea.
Além do olhar perdido nas dezenas de taças, Francisco caminha pelas páginas dos livros que contam a sua história e a do clube. Ele próprio está numa das fotos, com nove anos. O menino de calças curtas, em branco e preto, observa o senhor de hoje, com a camisa do Santa Marina, a barba branca e a máscara colocada com cuidado para não embaçar os óculos.
O museu do Santa Marina prova que a memória da cidade, das pessoas, dos trabalhadores e dos esportistas está presente também nos espaços de lazer, na opinião da historiadora do Esporte Aira Bonfim. “É ali que as pessoas brincam, fazem churrasco e se reencontram com seu passado. Um espaço que oferece há tanto tempo um campo e quadras para pessoas de todas idades guarda o passado esportista de São Paulo. A história do Santa Marina diz muito sobre a história da nossa cidade”.
Fundado em 15 de agosto de 1913, o Santa Marina é um time de futebol amador de origem operária registrado pelos trabalhadores da antiga Companhia Vidraria Santa Marina, gigante da área de vidros domésticos e produtos de porcelana e cerâmica. Se bobear, ainda existem louças com a marcas Santa Marina, Duralex e Marinez na casa de muita gente. As histórias entre clube e empresa se fundem. Ele está localizada na Água Branca desde a sua fundação, no mesmo endereço. É ali que está aquele portão azul. Nos anos 1960, a Santa Marina se associou ao grupo francês Saint-Gobain, um dos maiores fabricantes de vidro plano no mundo.
O espaço era uma opção de lazer e prática desportiva para os funcionários. Os trabalhadores viviam ali nos conjuntos residenciais chamados Vila Nova e a Vila Velha. Nas horas vagas, jogavam futebol e praticavam boxe. Isso significa que Francisco não empurra aquele portão sozinho. Ele tem a companhia de pelos menos três gerações. O bisavô trabalhou na área de segurança ; avô foi maquinista; pai Rafael Danilo foi operador de máquina e chefe de fabricação. Todos moraram na Vila Operária.
O clube cresceu e houve uma tentativa de profissionalização. Em 1960, o futebol chegou a disputar a divisão especial da Federação Paulista de Futebol, mas a campanha foi ruim. Recentemente, nomes famosos passaram por ali, como os ex-corintianos Lulinha e Fininho, Rodrigo Taddei, ex-Palmeiras e Roma, e o atacante Morato (hoje no Vasco). O Santa Marina também fez sucesso no boxe, ciclismo, halterofilismo, basquete, vôlei e judô. Foi referência no futebol de salão, onde foi bicampeão estadual e tricampeão municipal na década. Vários jogadores se transferiram para o Palmeiras, Ypiranga, Paulistano e Nacional.
Hoje, o clube tem cerca de 60 alunos na escolinha de futebol que sonham com a carreira de atleta. Antes da pandemia, o número era de 120. O clube também cede o espaço para ações sociais que beneficiam seis abrigos de crianças em situação de vulnerabilidade. Nos finais de semana, jogam ali equipes amadoras, como o time do Garrafão, só de veteranos. Cuidam do clube o próprio Francisco, Rose, sua irmã, e Carlos do Nascimento, um dos diretores. “A gente vai envelhecendo de dor. É muito triste ver que tudo isso pode se perder. Eu nasci aqui”, diz Carlos que trabalhou na ferramentaria da empresa entre 1963 e 1976.
A exemplo do que acontece com a grande maioria dos clubes amadores, a situação financeira é difícil. A mensalidade da escolinha é de R$ 60. O campo é alugado por R$ 400 mensais. Os custos, com água e luz, giram em torno de R$ 1200.
O contrato de comodato, que permitiria o uso do terreno por mais dez anos, foi assinado em 2009. O advogado Caio Marcelo Dias, representante do clube, afirma que Francisco não era assistido por advogados e que foi coagido indiretamente sob o risco de demissão – ele era ainda era empregado registrado da empresa. Depois de três meses, o advogado afirma que foi demitido da vidraria. “No meu entendimento, o clube já teria direito adquirido de usocapir após 15 anos após uso mansa, pacífica e ininterrupta. Pouco importa se foi assinado tratado de comodato”, diz o especialista do escritório Dias Advocacia.
A empresa pediu a reintegração de posse do terreno em duas ocasiões. Uma foi negada, a outra teve sucesso. A 2ª Vara Cível do Fórum da Lapa estabeleceu 120 dias para a desocupação voluntária do terreno. O prazo termina dia 7 de agosto. A ação paralela por usocapião (tempo de ocupação) não deve ser julgada a tempo.
Diana Mendes, pesquisadora do Museu do Futebol, avalia que uma das saídas para evitar disputas por espaço como essa é o envolvimento do poder público. “A gente precisa de uma jurisprudência para que questões assim, como a importância de um clube cultural e histórica de um clube de várzea, possam ser relevantes numa disputa judicial”, opina.
Para a especialista, o debate deveria ser ampliado. “Qual é a importância desse clube para a cidade de São Paulo? Quais pessoas podem ser ouvidas? A história do clube não é só dele, pertence a todos. Pesquisadores sobre a história do futebol de várzea deveriam ser ouvidas nessas disputas. Essa seria uma solução de mediação”, diz a especialista.
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