Por telefone, em chamada de voz, o artista tenta descrever a tal parede que, em tempos de pandemia, lhe permitiu ver o mundo. Pensa em ligar o vídeo. “Poxa, não vou saber fazer. Não sou bom nisso. Tem gente que se deu bem com essas coisas de modernidade. Eu não”, diz ele, um dos artistas desde sempre moderno, à reportagem. Neusa, sua mulher e fiel escudeira, está em outro cômodo da casa.
Porém, assim como faz em suas canções, Tom Zé se vale das palavras, sua matéria-prima, para explicá-la. Ou melhor, para contar toda a viagem que fez por lembranças, história, professores, conversas dos tios, livros e pensadores, estimulado pelo pedido dos curadores de Língua Solta, Moacir dos Anjos e Fabiana Moraes. “O convite me fez estudar. Você sabe que o ser humano esquece, de dez em dez anos, aquilo que aprende, né?”, diz.
A exposição é composta por um conjunto de objetos que fixam seus significados no uso das palavras na arte contemporânea e popular. Portanto, o público verá – a visitação presencial terá número limitado de participantes – peças como cartazes de rua, cordéis, brinquedos, revestimento de muros e estandartes de dança.
“O que me instigou foi essa retirada da hierarquia do que é clássico, ou a arte, e o popular. Isso cria um vento, ou melhor, um redemoinho no pensamento. Quando eles se juntam dessa maneira, ficamos imaginando nesse um passo para lá ou um passo para cá nessa história de a pessoa ser ou não ser um artista. Quando uma pessoa diz, ‘isso não é arte’, o que ela quer dizer?”, questiona-se Tom Zé.
Um dos pontos de partida do pensamento de Tom Zé foi o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009), pensador da antropologia estrutural que desenvolveu estudos sobre sociedades não civilizadas, com base na linguagem. Dele, Tom Zé segue sua linha de raciocínio fervilhante até sua infância, nos anos 1940, em Irará, nos arredores de Feira de Santana, na Bahia.
Tom Zé diz que, à época, vivia-se outra civilização. “A nossa concepção do universo, antes de entrar na escola primária, não tinha Aristóteles. Quando fui estudar, aos oito anos de idade, analfabeto, senti uma diferença brutal naquilo que o professor dizia. Fiquei assombrado. Eu estava de costas para a civilização”, diz.
Dessa época, ele também se lembra das reuniões na sala da case do avô, quando a língua era a principal distração. A roda de conversa deixava o menino curioso, prestando atenção em tudo – e no modo – como era falado. Nove da noite, o mesmo horário no qual Tom Zé vai para a cama até hoje, era hora de criança dormir. “Eu não conseguia pegar no sono, estava excitadíssimo, tentando me lembrar de tudo o que havia sido dito para saber se eu tinha compreendido”, conta.
Essa paixão pela língua portuguesa aparece na canção Língua Brasileira, que Tom Zé fez para o disco Imprensa Cantada, de 2003, na qual é chamada de “babel das línguas” e “dama culta e bela.” “Sou uma pessoa que vive com a língua de manhã, de tarde e de noite. É o que me provoca. Trabalhei feito um leão nesses dias para decifrar essa exposição. Meu métier é a canção, então tive que estudar, ir atrás.”
Novas canções
A pesquisa de Tom Zé para Língua Solta o inspirou para compor pelos menos três canções. Uma delas, que se confunde com o tema da exposição, ele fez para o Estadão, com o título de O Estado de São Paulo. Outra, com o título da mostra, brinca com o fato de a língua estar nua no museu – só de “touca”, como diz a letra. O artista não sabe se elas estarão na performance, que será pré-gravada. Para além dessas novidades, diz que pensa em novas canções para o musical de Felipe Hirsch e do coletivo Ultralíricos inspirado na canção Língua Brasileira, que estrearia em março de 2020, em São Paulo. Com a pandemia, a produção foi adiada.
Tom Zé só desconversa quando perguntado se já pensa em um novo disco – seus últimos lançamentos foram o álbum Sem Você Não A (2017) e o retrospectivo Raridades (2020). “Demoro para compor. Tem pessoas que chegam em casa às cinco horas da tarde, tomam um uísque e fazem uma música que dali a pouco vai estar na boca do povo. Sim, tenho feito (novas músicas). Só que, quando contamos antes da hora o que vai ser, a coisa perde um pouco a graça”.
Programação
A exposição temporária Língua Solta, do Museu da Língua Portuguesa, equipamento cultural do governo de São Paulo, é uma prévia da reabertura do espaço, que está prevista para o segundo semestre de 2021. Para marcar a Semana da Língua Portuguesa, terá, entre os dias 3 e 7 de maio, uma programação especial.
Para quem desejar ver a mostra presencialmente, o museu terá visitações com o público restrito em 160 pessoas no total – 10 por vez. É preciso emitir um ingresso eletrônico previamente para reserva de horário. O segundo lote estará disponível hoje (3), ao meio-dia. (bit.ly/ingressolinguasolta). As visitas serão realizadas nos dias 4, 5, 6 e 7 e maio, nos horários de 9h30, 10h30, 14h30 e 15h30. A classificação indicativa é de 12 anos.
A programação online terá vídeos, aulas, debates e performances feitas exclusivamente para a exposição, como a de Tom Zé, programada para o dia 5, às 17h10. Tudo poderá ser acompanhado no canal do Museu da Língua Portuguesa no YouTube (bit.ly/assistirlinguasolta).
No dia da abertura, na segunda-feira (3), às 19h30, haverá o pré-lançamento do videoclipe da música Meu Bairro, Minha Língua, que une as vozes dos artistas Dino D’Santiago e Sara Correia (Portugal) e Linn da Quebrada (Brasil).
Na terça-feira (4), às 19h30, o compositor e pesquisador José Miguel Wisnik apresenta uma aula sobre algumas referências literárias e musicais presentes no espaço Praça da Língua – uma das salas xodós do museu.
No Dia Mundial da Língua Portuguesa, na quarta-feira (5), às 11h, o debate Nós da Língua Portuguesa do Mundo reúne escritores de diferentes países lusófonos. Os convidados são Mia Couto (Moçambique), José Eduardo Agualusa (Angola) e Inês Pedrosa (Portugal). Às 13h, criadores de conteúdo no Instagram mostram a relação do funk com a literatura.
No mesmo dia, às 17h, os escritores Geovani Martins e Amara Moira e a pesquisadora de Literatura Indígena Julie Dorrico debatem sobre as resistências expressas nos falares brasileiros.
A cantora Maria Bethânia será responsável por encerrar a programação virtual, às 18h, com a leitura dos versos da canção Os Argonautas, de Caetano Veloso, inspirada nos versos “navegar é preciso / viver não é preciso”, de Fernando Pessoa. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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