Ailton Salomé Dutra
Desde longa data o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) vem sendo tributado nas saídas em transferências de mercadorias para estabelecimento, da mesma empresa, situados no mesmo estado ou em outros, ainda que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 1996, já havia se manifestado no sentido de que “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte” (Súmula STJ 166). Esta discussão é histórica, ultrapassando mais de 4 décadas de embates jurídicos, pois já era discussão no extinto ICM.
Em 2010, em processo sob o rito dos recursos repetitivos, o STJ novamente assentou que “o deslocamento de bens ou mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa, por si, não se subsume à hipótese de incidência do ICMS, porquanto, para a ocorrência do fato imponível é imprescindível a circulação jurídica com a transferência da propriedade” (REsp 1.125.133, publicado em 25/08/2010).
Dando um salto no tempo, ultrapassando diversos outros julgados sobre o mesmo tema, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão virtual do seu plenário, em 19 de abril deste ano, ao se manifestar na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 49 – Rio Grande do Norte (ADC 49), declarou inconstitucionais os artigos 11, §3º, 12, inciso I no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular” e 13, §4º da Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/1996), firmando o entendimento de que “O deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual”.
Ora, se há tanto tempo esta questão é discutida e sempre sendo julgada a favor das empresas transferentes, porque então até hoje é exigido o ICMS sobre elas? Simples: quase todos foram julgados pontuais, individuais, servindo apenas como jurisprudência orientativa ao judiciário, e, mesmo com a edição do Tema 1099 (ARE 1255885 RG / MS), em sede de repercussão geral ao tema, os estados fingiram não conhecer do tema e insistir na tributação.
Esta situação agora foi praticamente definida quando da edição da ementa e do acórdão da ADC 49, eis que o STF declarou a inconstitucionalidade de determinados artigos e trecho da Lei Kandir, com base no Tema 1099, reafirmando a já exaustiva jurisprudência superior de que tais fatos não se submetem ao ICMS.
O entendimento maior se sustentou na argumentação final de que não basta uma circulação física da mercadoria para se eclodir o fato gerador do ICMS; há que se ter como concretizada a circulação jurídica e econômica para que os aspectos da hipótese de incidência deste imposto se materializem, no que a transferência entre estabelecimentos da mesma empresa não possui estas características básica, pois não sofreram troca de titularidade nem se caracterizam como transação mercantil.
Discordâncias nossas à parte de certas argumentações do ministro Fachin, que, como de praxe, soluciona um problema e deixa e cria vários outros, algumas considerações práticas e jurídicas devem ser consideradas nesta declaração de não-incidência do ICMS.
Algumas das incoerências neste julgado, que não nos ateremos aqui por não ser o objeto principal deste artigo, levaram os estados, por meio do Comsefaz (Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal) a apresentarem ofício ao ministro Edson Fachin, requerendo soluções aos imbróglios criados, além do pedido de que a ADC 49 passe a ter validade somente a partir de 2023 (estranho país em que leis, mesmo declaradas inconstitucionais desde o seu nascedouro, tenham validade até o seu julgamento e mesmo após, com dilação de prazo de sua validade irregular, dentro dos preceitos da modulação dos efeitos!)
Aconselhamos muita cautela quanto a esta não tributação do ICMS nas transferências entre matriz/filial, nas duas vias, e tanto nas operações para o mesmo estado ou para outro, eis que diversas regras constitucionais e complementares, como a incumulatividade deste tributo, por exemplo, determinam que se uma operação não for sujeita à sua incidência, os créditos proporcionais a estas operações deverão ser estornados, bem como o imposto devido em etapas anteriores e dispensados legalmente (diferimento, suspensão, redução da base de cálculo e outros) deverão ser pagos, ou seja, haverá sim um débito para estas operações/prestações, não pela sua “saída”, mas pela sua “entrada”. Esta análise será de fácil constatação para produtos únicos (milho, por exemplo), mas complexas quando aplicada uma industrialização mais intensa, como os produtos transformados por industrialização, como os veículos. Entretanto, já existem diversas teses jurídicas contrárias que entendem pela manutenção dos créditos, sendo aconselhável também este estudo.
Orientamos que, enquanto não houver uma orientação administrativa ou judicial definitiva nestes casos, sem a necessidade da anuência do Poder Judiciário, que não se faça a dispensa por conta e risco, pois diversas situações ainda devem se perfazer para que haja a simples e diária não tributação, considerando que serão envolvidas tanto a questão do principal (o imposto em si) quanto às inúmeras obrigações acessórias (Nfe, EFD, ECD, Sped e outros).
Vamos aguardar mais um ato alienígena do STF em matéria de norma inconstitucional e ver o quanto (e quando) serão atingidos os contribuintes e os erários estaduais e o distrital, no que a ação destes fiscos haverá de ser intensa, eis que a perda da arrecadação será de magnitude exponencial.
Advogado especialista em Direito Tributário, bacharel em Ciências Contábeis
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