“Uma colega tirou uma foto de um ângulo não muito bom e a foto se espalhou pela escola. Muitos começaram a fazer piadinha e me chamar de cabelo de vassoura. Isso me traumatizou”, conta uma jovem de 16 anos, aluna de um colégio particular no interior da Bahia. “Toda vez que ligo a câmera, penso que vai acontecer de novo. Por isso não consigo ficar com ela ligada por muito tempo. Isso literalmente tira o meu sono.” O relato da adolescente, que preferiu não se identificar, se parece com o de outros jovens da mesma idade.
“Se abrir a câmera, podem tirar uma foto e fazer brincadeiras com a imagem. Esse é um dos fatores para que as pessoas não abram”, conta Mariana Sousa, de 14 anos, aluna de uma escola particular em Santo André, no ABC paulista. Segundo os jovens, os “prints” circulam nos grupos. Basta alguém aparecer na tela para ter um clique não autorizado do rosto. Depois, podem parar no WhatsApp ou no Instagram. As imagens ganham montagens, viram figurinhas e podem ser acompanhadas de comentários maldosos. Tem quem não ligue, mas alguns se incomodam.
Intrigada com a relutância que os alunos têm de mostrar o rosto nas aulas remotas, Luiza Goulart, assistente de orientação do Colégio Gracinha, na zona oeste de São Paulo, resolveu investigar com os estudantes do 8.º ano. “Em vários alunos, havia o medo de ser ‘printado’ e virar um meme, fazer brincadeira, montagem.” O Colégio Santa Maria, na zona sul, também foi atrás de explicações para a epidemia de câmeras desligadas e encontrou alguns motivos, entre eles o medo de que a própria imagem circule em outros espaços virtuais.
Segundo Roberta Edo, psicóloga e orientadora educacional do ensino médio no Santa Maria, as agressões online ou o ciberbullying – como são chamadas ofensas persistentes, com alvo específico – já aconteciam antes, no espaço mais íntimo das redes sociais dos alunos. As aulas remotas trazem o problema para as câmeras. “Tem uma imaturidade para lidar com a imagem, que pode ser usada de forma a humilhar o outro.” Os estudantes também temem expor situações íntimas da família para os colegas ou preferem se esconder, uma vez que não se arrumaram para a aula.
“Na hora de falar, me sinto mais confortável na aula presencial do que na online”, conta um adolescente de 13 anos, aluno de uma escola particular de Osasco, na Grande São Paulo. O medo, segundo o menino, é vazar conversas da família para todos ouvirem. Ele, que já teve fotos expostas por colegas no passado, também não liga a câmera na aula e diz não ver necessidade. “Eles falam que está quebrada. Até a escola já desistiu”, conta a mãe, gerente de processos, de 36 anos. Durante as aulas, o menino abre outros sites e navega pela internet.
O número de câmeras fechadas aumenta na mesma medida em que a idade dos alunos avança. Até os 12 anos, é comum que as crianças participem das aulas mostrando o rosto. Os pequenos fazem até recreio pelas telas e pedem para ficar conversando entre si na sala virtual depois do horário. A situação muda a partir do 6.º ano e a recusa parece perdurar entre jovens adultos. Uma pesquisa com 276 alunos realizada por professores de Biologia da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, identificou que o principal motivo para que alunos de graduação não abram as câmeras nas aulas é a preocupação com a aparência.
Quatro em cada dez estudantes relataram essa preocupação, ainda mais forte entre as meninas, segundo o artigo publicado na revista Ecology and Evolution. Em seguida, vem o temor de que os colegas vejam outras pessoas no ambiente. Um aparente contrassenso faz as escolas questionarem por que jovens – que estão o tempo todo expostos nas redes sociais – se preocupam tanto em se esconder na aula. A resposta vem dos adolescentes: nas redes, é possível controlar a imagem de modo que ela seja publicada do jeito que querem, com pose e filtros. Nas aulas, não.
Os ataques e as trollagens, que a princípio parecem só brincadeiras, podem levar alguns adolescentes a sofrimentos e até mesmo desengajá-los das aulas. “É importante não subestimar os sinais de sofrimento, mesmo se o problema está só na internet ou no que alguém comentou”, diz Juliana Cunha, psicóloga e diretora de projetos especiais da SaferNet.
“Na adolescência, a opinião dos amigos têm um peso diferente, que faz com que se tome a decisão de se excluir do grupo, não ir para a escola, desenvolver respostas defensivas para lidar”, completa Juliana. A SaferNet, que recebe denúncias e desenvolve ações de orientação sobre segurança na internet, nota aumento de demandas relacionadas a trollagens ou à invasão de chats e videoconferências para perturbar o grupo e até os professores.
Ainda há poucos dados sobre o impacto das aulas remotas no aumento de agressões virtuais, mas governos estão mobilizados para entender os efeitos do isolamento no comportamento e nas emoções dos alunos. Uma pesquisa da Comissão Europeia identificou que entre crianças que já tinham sido vítimas de ciberbullying, 44% identificaram aumento das agressões durante o lockdown. Metade das crianças entrevistadas foi vítima de pelo menos uma situação de agressão virtual.
A constatação de que os jovens não querem dar as caras na aula remota e os riscos maiores de agressões virtuais levam as escolas a discutir com os alunos a etiqueta na internet e a fortalecer grupos de apoio entre os próprios estudantes. Mariana Sousa, por exemplo, faz parte de uma equipe de ajuda formada por alunos do Colégio Xingu para apoiar a solução de conflitos e diz que o trabalho ficou mais difícil na pandemia.
“Com o desconforto ao abrir a câmera, não sabemos se a pessoa que está do outro lado está bem”, diz a menina. A diretora do colégio, Viviane Gonçales, teme que as agressões virtuais cresçam com o amplo acesso das crianças à internet na pandemia, sem a tutoria dos pais – ocupados com o trabalho e as tarefas domésticas.
Rodas. No Santa Maria, a psicóloga Roberta faz rodas de conversas com os alunos sobre o tema. E os trabalhos de cidadania digital – com assuntos que vão desde fake news nas redes até discussões sobre plágio e privacidade online – começam na infância. O colégio pretende lançar uma cartilha para nortear práticas digitais na escola, tanto de alunos quanto de professores e funcionários. “Todos precisam ter consciência de que o que você faz no virtual tem consequências reais”, diz Ághata Lima, supervisora de tecnologia educacional do Santa Maria.
Para Luciene Tognetta, doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em convivência na escola, as ofensas online podem causar dor em maior intensidade e por mais tempo porque as mensagens perduram nas redes. A solução, segundo ela, não passa por punição – é preciso atacar o que está por trás das agressões e do mau comportamento online. “É preciso discutir respeito, como tratar as pessoas, de que jeito o grupo se comunica e como resolve conflitos. Essas questões precisam mais do que nunca ter espaço na escola.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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