Flori Antonio Tasca
Embora o trote universitário possa ser caracterizado por abusos verbais e físicos, alunos e professores de um curso de Medicina, ao falarem sobre o tema, podem dar a esse “rito de passagem” um tom de legitimidade. Isso foi observado no estudo “Concepções sobre assédio moral: Bullying e trote em uma escola médica”, de Fabiana de Mello Villaça e Marisa Palacios, publicado na Revista Brasileira de Educação Médica em 2010.
O objetivo do estudo era verificar como o tema do trote aparece nas falas de estudantes e professores da graduação de Medicina. Sabe-se que o trote, muitas vezes, está longe de ser uma “brincadeira”, pois traz graves repercussões de ordem física ou psíquica, na medida em que ocorrem humilhações verbais, privações de sono e comida, hemorragias, traumatismos, afogamentos, desidratação e mesmo mortes. Para piorar, geralmente não há denúncias da violência, pois a vítima sente medo da retaliação que irá sofrer.
Nas entrevistas feitas com alunos e professores do curso de Medicina em uma universidade do Rio de Janeiro, descobriu-se que violências e excessos cometidos durante o trote universitário são percebidos como corriqueiros. As respostas deram a entender que é normal haver brigas abusivas entre calouros e veteranos. Parece haver, inclusive, certa aceitação por parte do corpo docente e da universidade quanto à manutenção do trote, que, ainda que não resulte em danos graves a algum calouro, não deixa de se fundamentar em abusos psicológicos. Uma vez banalizados os abusos, os professores passariam a agir como se fosse natural viver ou testemunhar a violência.
O que se entende por “brincadeira” ocorre à custa dos calouros, para a diversão dos veteranos, e de forma coercitiva, com base no medo. Há, por exemplo, a ameaça de “isolamento social” do calouro que se recuse a participar do trote. Na maior parte dos incidentes relacionados ao trote também se reporta o abuso de álcool. O calouro pode beber ao observar os outros fazerem o mesmo ou pode ser obrigado a beber para que não sofra uma punição social. As entrevistas revelaram o reconhecimento do abuso em trotes, mas ao mesmo tempo pareciam justificá-los, compreendê-los e aceitá-los.
As autoras sugerem como possível explicação para esse resultado a falta de reflexão sobre o tema, assim como um certo sentimento de impotência e de negação do outro. E elas destacaram o papel da universidade na abertura ao diálogo e na elaboração de estratégias de enfrentamento do problema. A universidade deve deixar claro que não tolerará qualquer tipo de violência. Onde há violência é onde o diálogo fracassou.
Afinal, é como elas observaram: “Se na universidade estamos comprometidos com a ideia de formar pessoas preparadas para o diálogo, comprometidas com um mundo de paz, não podemos ser coniventes ou tolerantes com qualquer tipo de violência”. Por isso, sustentaram a necessidade de se iniciar nas escolas médicas, com urgência, uma profunda reflexão sobre todas as formas de violência, a fim de que seja elaborada uma política eficaz de combate a ela, envolvendo alunos, professores e técnicos.
Educador, Filósofo e Jurista. Diretor do Instituto Flamma – Educação Corporativa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, fa.tasca@tascaadvogados.adv.br