A magnitude do dano, semelhante ao de uma guerra ou de uma catástrofe natural, chocou o mundo. Um desastre pelo qual ninguém, ou quase ninguém, prestou contas, e pelo qual ninguém foi julgado. Em muitos casos, as famílias das vítimas nem sequer receberam visitas ou explicações das autoridades.
O Líbano já estava à beira do colapso antes da explosão, com uma economia deprimida, um setor de saúde saturado pela pandemia e um futuro obscurecido pela fuga de cérebros.
“Pensamos que havíamos chegado ao fundo do poço. Como a situação poderia piorar?”, disse Rima Rantisi, professora da Universidade Americana de Beirute.
A população acusa os dirigentes – muitos deles no poder há décadas – de corrupção e incompetência e, sobretudo, de deixar o país afundar.
Um ano após a tragédia, o país ainda não tem um governo estável que o tire da pior crise socioeconômica que já vivenciou. Bilhões em ajuda do exterior continuam bloqueados por falta de reformas.
Um ano atrás, no dia 4 de agosto, às 18h, centenas de toneladas de nitrato de amônio armazenadas no porto sem medidas de proteção – como as próprias autoridades reconheceram – pegaram fogo e provocaram a explosão.
As imagens do cogumelo no céu de Beirute lembravam os bombardeios atômicos americanos de Hiroshima e Nagasaki em 1945.
‘Nossa vida parou’
A população atribui a tragédia no hangar número 12 à negligência e à corrupção das autoridades, que permitiram o armazenamento de materiais perigosos por anos perto de bairros residenciais.
“O que ficou claro para mim naquele dia é que aqueles que governam este país são criminosos e assassinos”, disse Rima Rantisi. “Depois da explosão, entendemos perfeitamente: enquanto eles permanecerem no poder, nada se resolverá.”
A tragédia deixou 214 mortos, de acordo com um balanço oficial, mais de 6.500 feridos, pessoas incapacitadas para o resto da vida e dezenas de milhares de desabrigados.
Nesta quarta-feira, quando se completa um ano da explosão, as famílias das vítimas farão uma missa no porto e manifestações serão convocadas contra os governantes.
“Nossa vida parou no dia 4 de agosto, perdemos tudo”, resume Karlen Hiti Karam, de 26 anos, em luto pelo marido, irmão e prima, todos bombeiros enviados ao porto para ajudar a apagar as chamas. “Nada pode aliviar nossa dor e sinto mais falta deles a cada dia. Antes da explosão, o colapso econômico já havia começado. Os responsáveis por tudo isso são os mesmos. Eles devem ser responsabilizados.”
Mas, em um país que registrou vários assassinatos políticos pelos quais ninguém foi julgado ou detido, é difícil pensar que a justiça seja possível.
O primeiro juiz encarregado do dossiê da explosão, Fadi Sawan, foi afastado em fevereiro após causar um alvoroço político ao acusar o chefe do governo demissionário, Hassan Diab, e três ex-ministros de negligência. As tentativas de seu sucessor, Tarek Bitar, de fazer o mesmo se chocaram com novas manobras para evitá-lo.
Estado falido
Para os libaneses, a explosão de 4 de agosto foi a gota d’água. Eles já estavam decepcionados com a falta de resultados dos protestos de outubro de 2019, quando a ira popular irrompeu contra a elite governante do país. As manifestações levaram ao pedido de renúncia de Saad Hariri, então primeiro-ministro, que entregou o cargo para apaziguar o ambiente interno. Em seu lugar, assumiu o comando do Executivo Hassan Diab, que era o premiê quando houve a explosão.
Todo o gabinete de Diab entregou o cargo após a tragédia em Beirute, o que levou ao cargo Mustapha Adib, que era embaixador do Líbano na Alemanha. A ascenção de Adib foi endossada por potências ocidentais – e mais diretamente pelo presidente francês, Emmanuel Macron -, mas o diplomata deixou o cargo no mês seguinte, alegando dificuldade para formar o novo governo.
Com isso, o presidente libanês, Michel Aoun, anunciou a volta da Saad Hariri ao cargo, após conversa com parlamentares. Hariri se manteve no poder por quase um ano, mas renunciou no último dia 15, em um novo aprofundamento da crise política do país.
Atualmente, a economia vai de mal a pior, com o colapso da libra libanesa e restrições bancárias sem precedentes causando longas filas para se conseguir dinheiro. Filas também são formadas em frente aos postos de gasolina e os moradores sofrem cortes de energia, com blecautes que afetam até o aeroporto internacional de Beirute, onde expatriados libaneses chegam com malas carregadas de remédios impossíveis de serem encontrados no país. Hospitais alertam para uma catástrofe de saúde devido à falta de energia.
O bairro de Mar Mikhael, na região portuária de Beirute, recuperou uma aparência de normalidade, com lojas e bares abertos.Mas as autoridades pouco ou nada fizeram para ajudar as vítimas e reconstruir uma cidade devastada. O fardo da limpeza dos escombros recaiu sobre um exército de jovens voluntários e ONGs. Apesar das obras de reconstrução e reparo, a catástrofe deixou cicatrizes nos bairros mais atingidos, que abrigam museus, galerias de arte e joias históricas.
“Todas as pessoas que conheço têm problemas de sono e lutam diariamente, agarrando-se ao que lhes resta”, disse Rima Rantisi. “Todos os dias acordamos com algo pior do que no dia anterior.”
O Líbano, antes considerado “a Suíça do Oriente Médio”, tornou-se um Estado falido. E quem viveu uma guerra civil diz que a crise atual é pior.
‘Dirigido por loucos’
O artista Bernard Hage relata esse declínio em quadrinhos publicados no jornal independente L’Orient-Le Jour. “Imagine um hospital psiquiátrico mal equipado dirigido por loucos”, escreveu Hage recentemente. “Eu realmente vejo uma distopia, é a única palavra que consigo pensar para descrever o Líbano. É o seu pior pesadelo e você não tem controle sobre ele.”
Mas, como muitos ativistas, ele não perdeu as esperanças. A solidariedade da população lembrou que o pulso da “revolução” de 2019 ainda estava batendo. Alguns candidatos antigovernamentais chegam a sonhar com um avanço nas eleições legislativas marcadas para 2022.
Bernard Hage aposta acima de tudo em uma investigação para finalmente ver um líder na prisão. “Se essa explosão for capaz de derrubar pelo menos um, pode ser o início de uma série. Seria o primeiro efeito dominó a derrubar o sistema. A brecha no muro”, afirmou. (Com agências internacionais)
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