Dentre as maravilhas dos contos populares figura “as três flechas de Egil”. Esse conto escandinavo nos faz pensar até onde vão a destreza e a coragem humana. O arqueiro era famoso por sua habilidade com o arco e a flecha, dono de uma pontaria extraordinária e sem rivais à altura. Até que seu rei lhe fez um desafio inusitado. “Se é coisa que um homem possa fazer, hei de fazê-lo”, disse ao rei. Mas não contava com tamanha maldade num simples desafio.
Tratava-se de acertar uma maçã, a uma distância razoável, posta sobre a cabeça de seu próprio filho. Dada a palavra, Egil não poderia voltar atrás. Ficou profundamente preocupado e emocionado, mas escolheu seu melhor arco e três de suas melhores e mais certeiras flechas, pois não ignorava o quão difícil seria atingir aquele alvo especial. Temia que a emoção tomasse conta no momento preciso, que um defeito dos aparelhos, um vento imprevisto, um grito, um incidente qualquer lhe tirasse a concentração. Não podia, de maneira alguma, errar o alvo, cujo pedestal era seu próprio filho.
No dia combinado, a corte real se fez presente com grande expectativa e alarido. O menino foi amarrado a uma árvore e o pai se posicionou no local indicado. Distendeu a arma, tirou uma das flechas da aljava, mirou, disparou… Silêncio total. A maçã cravejada caiu como um pássaro ferido, como um coração traspassado e inerte, aos pés do filho imóvel, cujos lábios esboçavam um imenso sorriso. Ao cumprimentar aquele valoroso pai, cuja fronte derramava suor e lágrimas, o rei fez um único comentário: “Por que três flechas, quando uma só lhe bastava?” E a resposta veio irônica: “Se matasse meu filho, as outras duas seriam para V. Majestade: uma no seu coração de pedra e outra na sua cabeça insana”.
Um conto é sempre atual. Quase não temos mais reis, mas há muitos governantes por aí com o mesmo coração de pedra e cabeça insana quanto ao rei dessa história. Pior, se acham soberanos! Reinam sobre a podridão de uma autoridade nem sempre legítima ou quase sempre corroída pelo fascínio do poder, da impunidade, do autoritarismo. Desafiam os melhores dentre seus súditos a lhe proporcionarem espetáculos, exibirem suas capacidades, destreza no que fazem, como se os méritos que vêm do povo nunca pudessem ultrapassar a malícia e a falsa sabedoria de quem os governa. Põem dúvidas sobre a capacidade dum simples cidadão. Colocam riscos à integridade familiar, à vida de muitos, apenas com o intuito de verem reconhecidas suas ideias, sua voz de comando, seu poder sobre o povo.
A ironia na resposta de Egil, no entanto, estampa nossa fragilidade humana, a sede de vingança. Não combina com a filosofia cristã. A nós, uma única flecha nos basta, pois a mão que nos guia é a mais justa e certeira do universo, a mão de Deus. Será sempre o Pai o dono de nossas capacidades, nossos tiros certeiros diante de um desafio profano, uma prova à nossa fé. Ou seja, se o mundo nos põe à prova, “nenhum atleta será coroado, se não tiver lutado segundo as regras” (2Tim 2, 5). E as regras de Deus nos capacitam: “Tornou minha boca semelhante a uma espada afiada, cobriu-me com a sombra de sua mão. Fez de mim uma flecha penetrante, guardou-me na sua aljava” (Is 49,2). E toda flecha precisa ser reta, certeira, fiel ao objetivo do arqueiro, nosso Pai. “Pois, como as flechas nas mãos dos guerreiros, assim serão os filhos… Feliz o homem que assim encheu sua aljava” (Sl 126, 4-5).
Pe. Lino Baggio, SAC
Paróquia São Roque – Coronel Vivida
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