De acordo com portaria editada pelo governo federal em maio de 2020, os recursos, no valor total de R$ 5 bilhões, deveriam ser utilizados exclusivamente para impedir recuperações judiciais e falências no setor durante a crise sanitária. Normas impostas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) determinaram que os valores sejam direcionados especialmente para pequenas e médias empresas.
O montante é custeado pelo Fundo Geral do Turismo (Fungetur), ligado ao Ministério do Turismo, e foi destinado a bancos públicos credenciados de todo o País. Caberia às instituições financeiras realizar operações de crédito com empresários do setor. Segundo o TCU, além de privilegiar pequenas e médias empresas, o dinheiro só poderia ser usado em obras civis para adaptar estabelecimentos às necessidades que surgiram com a pandemia. Jamais para construir novos empreendimentos.
As informações sobre o destino desta verba bilionária estão nas prestações de contas sobre operações de crédito que bancos públicos fizeram. Consultados pelo Estadão, procuradores de contas e especialistas em administração pública avaliam que houve irregularidades e desvio de finalidade na execução deste orçamento.
Dois casos chamam a atenção: o da empresa Vista Xingó Empreendimento Ltda, aberta pelo desembargador Aldo de Albuquerque Melo, que recebeu R$ 17 milhões para erguer um resort na cidade alagoana de Piranhas, na chamada Rota do Cangaço. O outro envolve a construção do museu do Flamengo, que será inaugurado no ano que vem.
Parte dos recursos foi liberada para o Banco do Estado de Sergipe (Banese). Eram R$ 17 milhões de ajuda emergencial. Em junho deste ano, a instituição repassou 76% da verba para a empresa do desembargador Albuquerque Melo.
Ao todo, R$ 13 milhões atenderam ao pedido de empréstimo feito em dezembro de 2020. Dois diretores do Banese – Olga Carvalhaes e Renato Cruz Dantas – se demitiram em dezembro, mesmo mês em que o empréstimo foi pedido, e se tornaram sócios da Xingó em maio, um mês antes de o dinheiro ser liberado para o resort. As obras já receberam os alvarás e as licenças ambientais.
As operações do Banese estavam na mira do TCU desde 2018, que questionava o fato de a instituição fechar empréstimos com empresas de grande porte. Em outro caso que chama a atenção, a construção do museu da Gávea foi anunciada no mês passado pelo Flamengo, ao custo de R$ 18 milhões. Desse total, R$ 3,7 milhões foram emprestados pela Agência Estadual de Fomento do Rio (Agerio), que foi contemplada com R$ 67 milhões dos recursos emergenciais do governo federal para o setor do Turismo.
A operação de crédito foi feita pela Agerio com a Mude Brasil, empresa que construirá o museu em parceria com o clube. Trata-se do mais vultoso empréstimo concedido pela agência em meio à pandemia. Ao todo, ela fez operações de crédito de R$ 51 milhões, a maior parte a pequenas e médias empresas.
Explicações
Em um processo de acompanhamento dos gastos do governo em meio à pandemia, o TCU pediu, em junho de 2020, explicações do governo federal a respeito do uso da verba bilionária do Fungetur destinada ao setor do Turismo. Relator do processo sobre as ações do governo em meio à pandemia, o ministro Bruno Dantas afirmou que “obras civis e empreendimentos turísticos não parecem atender a requisitos de urgência”.
Em um outro julgamento, específico para iniciar o acompanhamento da verba emergencial liberada por meio do Fungetur, a Corte acabou decidindo que a verba poderia ser utilizada para três fins: empréstimos de capital de giro, para que hotéis, agências de turismo, transportadoras, entre outros do setor, pudessem manter as contas em dia e pagar funcionários; a manutenção de obras paralisadas em razão da crise; e adequações da estrutura dos locais para as necessidades que surgiram com a pandemia. Não estava entre as destinações investimentos em novos empreendimentos. Este mesmo processo resultou em uma notificação do TCU ao Ministério do Turismo para que a pasta se precavesse do “risco da destinação de recursos para fins alheios ao objetivo e às finalidades do crédito extraordinário”.
O TCU continua a acompanhar a liberação destes R$ 5 bilhões, e ainda vai apresentar um novo relatório de fiscalização.
Em um processo de acompanhamento desta verba, o TCU também questionou os critérios para o governo federal liberar R$ 500 milhões ao Banco de Brasília (BRB) e outros R$ 500 milhões ao Banco do Nordeste, por “nunca terem operado com linhas de crédito” do fundo. Juntos, os bancos liberaram apenas R$ 33 milhões. Uma das operações favoreceu um restaurante erguido no Ceará em área de preservação ambiental em uma operação de crédito. Outros vultosos empréstimos foram parar nas mãos de políticos investigados.
Segundo os dados das prestações de contas, o BRB liberou, até o momento, apenas R$ 17 milhões com a verba emergencial. Do total, mais da metade foi parar em empresas ligadas a alvos de investigações. A um hotel do ex-governador Paulo Octávio, que hoje preside o PSD em Brasília, o banco emprestou R$ 3 milhões. Dono de um patrimônio de mais de R$ 300 milhões, Octávio é réu na Operação Caixa de Pandora.
O maior empréstimo do banco foi feito a uma empresa que tem como sócio o ex-secretário executivo da pasta do Turismo, Frederico Silva da Costa. Em 2011, no governo Dilma Rousseff, ele foi preso no âmbito da Operação Voucher, que apurou desvios na pasta por meio de contratos com entidades do terceiro setor.
Deputados
Em meio a relatos de dificuldades de acesso ao Fungetur, deputados federais aprovaram na quarta-feira passada um projeto do tucano Otávio Leite (PSDB-RJ) que flexibiliza o acesso às verbas do fundo. Agora, além dos bancos públicos, esse dinheiro também poderá ser destinado a Estados e Municípios, além de cooperativas e entidades do terceiro setor.
O texto do tucano abriu espaço ainda para linhas de financiamento para grandes empresas. Até o momento, segundo as prestações de contas, de R$ 5 bilhões autorizados pela MP, R$ 3,6 bilhões foram repassados aos bancos. Do total, R$ 1,9 bilhão foram emprestados ao setor – a maior parte, a pequenas e médias empresas.
Defesa
O Banco de Sergipe afirmou que seu contrato com o Fungetur prevê a destinação para “obras civis e implantação de empreendimentos turísticos”. A instituição disse ainda que não há prazo de quarentena para que seus ex-diretores se beneficiem em operações de crédito do banco.
Em nota, a empresa Vista Xingó afirmou que apenas R$ 4,6 milhões foram liberados pelo banco, em resposta a uma carta proposta de R$ 13 milhões feita ao Banese. A empresa também afirmou que os ex-diretores do Banese “não participaram ou participam de qualquer tratativa sobre a operação de crédito”.
A Mude Brasil, administradora do Museu do Flamengo, afirmou em nota que as obras vão permitir “a melhor aplicação das normas sanitárias de prevenção à Covid-19”. “O projeto em questão também prevê a geração de mais de 3.600 empregos diretos”, diz a nota. A empresa também disse que o empréstimo “está em linha com o Acórdão 2.283/20 do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre os recursos da Lei 14.051/20” – que definiu as regras para uso da verba emergencial. E afirma que o empréstimo representa 20% do total do projeto do museu.
“O empréstimo foi solicitado pela Mude Brasil à AgeRio atendendo a todos os pré requisitos necessários à competência da agência: concessão de crédito, com prazos e taxas de juros devidamente estabelecidos, a projetos que gerem retorno financeiro e de desenvolvimento ao Estado do Rio de Janeiro, como é o Museu Flamengo”, argumenta.
A Agerio afirmou que “o cronograma de execução do projeto de ampliação do museu foi significativamente impactado pelos efeitos da pandemia da Covid-19”. E sustentou que a obra “está em linha” com o que foi decidido pelo TCU.
O BRB afirmou que as operações de crédito “seguem as normas do programa do Ministério do Turismo”. O BNB afirmou que a operação com uso do Fungetur não se tratou de crédito extraordinário.
O advogado Marcelo Turbay, que defende Paulo Octávio, afirma que “as provas produzidas em inúmeras audiências comprovaram os graves equívocos cometidos pela acusação, tendo o próprio delator isentado Paulo Octávio”.
A Bali Park informou, por meio de nota, que Frederico Costa “possui somente 1% das cotas da empresa Bali Park Ltda. e que não participou das negociações com o Banco BRB”. A empresa diz ainda que o empreendimento vai gerar 450 empregos, entre diretos e indiretos.
O advogado Thiago Machado de Carvalho afirmou que Fred Costa sempre “pautou a sua conduta pessoal e profissional de acordo com a legalidade”. “O sr. Frederico sempre esteve à disposição da justiça e das autoridades, comprovando a sua inocência junto ao CGU e perante o Poder Judiciário, de modo que não ostenta qualquer condenação.” As ações estão em fase de intimação de testemunhas.
Em resposta ao Estadão, o Ministério do Turismo afirmou que a legislação “prevê que o risco da operação é 100% da instituição financeira credenciada” e que a verba do orçamento emergencial pode ser devolvida caso fique parada nos bancos. “Caso o recurso extraordinário não seja utilizado, este deverá ser devolvido futuramente aos cofres do Tesouro Nacional e, em hipótese alguma, poderá ter desviada a sua finalidade, podendo a instituição financeira sofrer sanções de acordo com as cláusulas previstas em contrato e a legislação pertinente”, informou a pasta.
Ponto a ponto
Crédito
O governo federal liberou um crédito extraordinário de R$ 5 bilhões ao setor do turismo. O dinheiro é repassado a bancos públicos, que ficam responsáveis por emprestá-lo a empresas da área.
Restrição
O TCU exige que a verba seja utilizada somente para socorrer o setor, e não para construir novos empreendimentos. Empresas de pequeno porte são prioridade.
Resort
R$ 13 milhões foram destinados a um resort em nome de magistrados e ex-diretores do Banese.
Museu
R$ 3,7 milhões para a construção do museu do Flamengo.
Políticos
Políticos investigados receberam R$ 9 milhões do BRB; que recebeu R$ 500 milhões e liberou R$ 17 milhões. O BNB recebeu R$ 500 milhões, e liberou R$ 11 milhões a empresas de grande porte.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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