Enquanto muita gente se separou na pandemia, eu casei”, diz. Atrás dela, uma televisão sem som sintonizada em um canal de notícia mostra os desdobramentos da CPI da covid. O assunto, de uma maneira ou de outra, aparece na conversa. “Não quero estar ao lado de quem não usa máscara ou rejeita a vacina”, diz. Na conversa, Zélia fala sobre outro casamento, o musical, com Juliano Holanda, seu parceiro no disco, e das canções que fizeram.
Se compararmos a parceria musical com um relacionamento, ficar é um feat (participação) e uma parceria de quinze músicas já é praticamente um namoro. Por que escolheu o Juliano Holanda para este trabalho?
As músicas desse trabalho são irmãs, elas nasceram quase do mesmo parto. Eu e Juliano tivemos uma espécie de espasmo. Estou muito ativa, compondo muito e com muita gente. Porém, o Juliano furou a fila de uma maneira muito forte, pela disponibilidade e pelas afinidades que fomos sentindo. Era música o tempo todo! Na faixa Onde É Que Isso Vai Dar?, eu falo “acordo cedo, palavras soltas/ mal lavei o rosto e a canção brinca na boca”. É de uma literalidade desconcertante. Eu acordava olhando o celular, se já havia uma resposta dele, e eu, imediatamente, mandava uma frase. Foi tudo muito intenso. A gente está assim, emocional. É por isso que esse disco fala de algo que diz respeito às pessoas.
Como o conheceu e como sentiu que ele seria seu parceiro?
O (empresário) José Maurício Machline fez um almoço em sua casa para que o Almério cantasse. Juliano estava com ele. Muito calado, na dele. Já achei isso bacana, pois não curto muito oba-oba – e no nosso meio tem muita fagulha para pouca chama (risos). Quando eu estava para entrar em estúdio para gravar o álbum Tudo É Um (de 2019), Almério me ligou, estava com o Juliano no Rio de Janeiro novamente. Eles foram me mostrar algumas canções e eu escolhi O Que Mereço. Até brinquei com o Juliano que ele não me esperou para fazer essa música. Depois disso, um começou a cutucar o outro. Antes da pandemia, começamos a compor juntos. Quando o isolamento começou, a provocação ficou mais intensa. Minha ideia era fazer um disco com as composições que fiz durante a pandemia com diversos parceiros. Porém, um dia, mandei uma mensagem para ele, dizendo que tinha mudado de ideia. Queria fazer um disco só com as nossas. Não estou só gravando músicas, estou afirmando um encontro que foi impactante.
Antes, vocês foram gravados por Elba Ramalho, a canção Eu e Vocês, que batizou o último álbum dela.
Quando a fizemos, disse para o Juliano que era a cara da Elba, pois falava de um coração materno – e eu nem sabia que ela estava fazendo um disco com a família (o filho Luã Yvys, produtor, e as filhas nos vocais). Mandei e ela rapidamente me respondeu que a música estava dentro e seria o nome do álbum. São essas confirmações que recebemos indicando que estamos no caminho certo. Na verdade, fiz essa música pensando no meu público, no banzo que eu sinto do palco, da saudade de cantar com o público. Eu adoro isso: a gente faz uma música por um motivo e ela toca as pessoas por outro. Eu saquei que a Elba ia se identificar pelo lado familiar, e foi o que aconteceu. A letra fala “uma balada simples, um amigo em casa”. A gente nunca deu tanto valor a isso.
A faixa Pelespírito fala de um momento seu, mas mostra sua preocupação com o todo.
Tem sido uma preocupação constante minha. Tenho aprendido que é preciso estarmos mais juntos para sairmos dessa. E não é o mais junto romântico. É no sentido de que, se eu não te respeitar e se você não me respeita minimamente, não vamos conseguir nada. Mas há pontos que precisam ser comuns. Se você não concorda que tem de usar máscara e tomar vacina, eu não quero falar com você, não tenho vontade. E aí, onde é que isso vai dar? Estamos perdendo pessoas e perdendo momentos valiosos da vida. É um momento de mistério. E ele permeia o disco.
O disco tem uma pegada folk. Por que escolheu esse caminho musical?
Ele é total folk – e eu sou muito folk na minha essência. Quando eu apareci (para o grande público), no disco que tinha Catedral, sempre me perguntavam qual era o meu estilo. Eu inventei que era pop-folk-brasileiro. Nisso, tem o violão de aço, que é uma afinidade que tenho com o meu primeiro parceiro, o Christiaan (Oyens) e também agora com o Juliano. A espinha do disco sou eu e meu violão. Foi muito natural que os arranjos ficassem com essa levada que muito me caracteriza.
Tudo Por Nada talvez surpreenda porque é sertaneja, algo que ainda não tinha explorado.
Nela há um pouco do sertão nordestino e da música pantaneira. É uma brasilidade que também aparece em Eu Moro Lá, que é mais samba-reggae, com o violão que o Webster (Santos), que é baiano danado, tocou. O disco teria 14 músicas, já estava orçado, mas essa precisava entrar. O discurso dela é muito forte, fala “eu preciso doer para te estender a mão”. É tudo o que estamos vivendo agora. Se para isso eu preciso estar doendo, OK, já estou doendo, pronta para ajudar alguém.
Outra faixa forte é Você Rainha, na qual você aborda a questão da violência contra a mulher, não só como denúncia, mas como uma forma de encontrar uma solução. Como você a criou?
Eu a dedico às mulheres que ficaram em casa com seus algozes ou foram vítimas de feminicídio, que é uma das doenças do Brasil. Nós, mulheres, conhecemos as assediadas. Somos as que sofrem essa violência. Sou essas mulheres. Todas nós somos essas mulheres. Essa canção é um carinho em todas elas. E ela propõe uma virada. Quando a mulher se sente um animal, uma fêmea que se protege, protege suas crias, se torna a rainha de sua vida. Fiz a letra com sentido de urgência e mandei para o Juliano. Ele logo fez a música. É bom poder contar com um parceiro homem nessa luta.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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