Guerra do Paraguai: Original ou falsificada?

Paulo Argollo

É verdade: a história é uma fabulação. Ela tem nuances e perspectivas que variam muito de acordo com quem está contando. Também existe a variação que acontece de acordo com novas descobertas, afinal, os historiadores existem para isso, para estudar e encontrar cada vez mais indícios que determinado fato aconteceu, como aconteceu e porquê aconteceu. A gente já falou bastante aqui neste espaço sobre como a história do Brasil foi construída e transformada desde o reinado de Dom Pedro II até hoje. Até pouco tempo atrás os bandeirantes eram vistos como heróis desbravadores, Tiradentes era um mártir da liberdade, a independência do Brasil foi proclamada com garbo e elegância às margens do Ipiranga, a corte de Dom Pedro II era abolicionista e a guerra do Paraguai foi uma conspiração da Inglaterra contra um país em pleno crescimento, que ameaçava a hegemonia britânica!

Bom, quem tem um mínimo de interesse pela história sabe que tudo isso não foi bem assim. Os bandeirantes eram criminosos, cruéis e gananciosos; Tiradentes não tinha nada de mártir, foi mais uma vítima das circunstâncias e levou a culpa no lugar de homens poderosos; nossa independência foi proclamada sem nenhum glamour, com Dom Pedro I tendo acabado de se aliviar de uma terrível diarreia, viajava sem casaca e montava um burro; a corte de Dom Pedro II, em especial ele próprio e sua filha Isabel, até podiam admirar os ideais abolicionistas, mas evitavam ao máximo a questão para não desagradar os grandes fazendeiros de cana e de café, que faziam a economia do país girar; e, por fim, a guerra do Paraguai foi um massacre vergonhoso, uma guerra sem propósito e sem vencedores. Aliás, é por causa da guerra do Paraguai que eu estou aqui escrevendo hoje.

Assisti com interesse os primeiros capítulos da nova novela da Globo, Nos Tempos do Imperador. Parece que vai ser uma boa novela, mas está levando em muito alta conta esse negócio de fabulação da história. Tudo bem, é por propósitos dramáticos, é uma história que está sendo contada inspirada na realidade, mas com altas doses de ficção. Mas quando vi a cena em que o futuro presidente do Paraguai vai ao encontro de Dom Pedro II num acampamento no meio do mato para lhe propor uma aliança política e pedir a mão da princesa Isabel em casamento, o que Dom Pedro II nega enraivecido, já saquei que vai ter licença poética, ficção inspirada na realidade, a dar com pau. Provavelmente vão usar esse mote, que nunca aconteceu, importante dizer, esse encontro entre Solano Lopez e Dom Pedro II, para justificar a guerra do Paraguai e colocar o Brasil como bonzinho da história.

Em 1864, Francisco Solano Lopez assume a presidência do Paraguai, substituindo seu pai, Carlos Antonio Lopez. Assim como seu pai, Francisco Solano Lopez se tornara presidente vitalício do Paraguai, ou seja, ficaria no poder até sua morte. É ditadura que chama, não é? É, sim. E das bravas. Anos antes de morrer, Carlos Antonio Lopes fez de seu filho, que tinha então apenas 18 anos de idade, general, e o enviou à corte da Prússia, na Europa, para aprender técnicas militares. Quando voltou, Francisco Solano Lopez militarizou drasticamente o Paraguai. Com a morte de seu pai, ele se torna presidente e passa a procurar meios de assegurar uma saída para o oceano Atlântico, que garantisse o comércio entre o país e a Europa.

Enquanto isso, o Uruguai fermentava um conflito entre os Blancos e Colorados, partidos políticos rivais. O Paraguai, tido como pária, utilizava o porto uruguaio em acordo com os Colorados, que estavam no poder, já que não podiam usar os portos da Argentina ou do Brasil. No entanto, em 1863 os blancos deram um golpe sob o comando de Venâncio Flores, com o apoio de tropas brasileiras e argentinas, e Flores assumiu o poder no Uruguai e proibiu a utilização do porto para os Paraguaios. Solano Lopez então resolveu invadir o Brasil. Avançou suas tropas rumo ao Mato Grosso e, paralelamente, mandou outras tropas invadir o Rio Grade do Sul. Para isso, eles precisariam atravessar território argentino. A Argentina, aliada do Brasil, não permitiu a passagem. Solano Lopez não obedeceu e mandou suas tropas seguirem em frente, declarando guerra também à Argentina. Assim, tudo começou. Brasil, Argentina e Uruguai se uniram para combater o Paraguai e seus avanços territoriais.

Até pouco mais de 20 anos atrás, ainda se dizia que a Inglaterra fomentou o conflito pelo motivo de que o Paraguai poderia ameaçar a hegemonia britânica, pois o Paraguai estava em pleno desenvolvimento social e econômico. Uma conversa fiada daquelas, né? É verdade que Solano Lopez vinha desenvolvendo no país um plano heterodoxo de desenvolvimento, não colocando todas as fichas do governo na agricultura, além de ter chegado perto de erradicar o analfabetismo da população. Mas Solano Lopez era essencialmente um ditador sanguinário, o Paraguai não tinha poder econômico nenhum para ameaçar sequer o Brasil comercialmente. A maior parte da população paraguaia era de guaranis que vinham de 300 anos de história com as missões jesuíticas, que desde então já ensinavam os índios guaranis a ler e escrever. Era natural que o analfabetismo fosse baixo no país, e não é mérito do Solano Lopez.

O que aconteceu é que Brasil e Argentina precisavam de recursos externos para financiar seus exércitos. O foram os bancos ingleses que emprestaram mais de 18 milhões de libras para o Brasil e mais de 8 milhões de libras para a Argentina. E foi só essa a influência da Inglaterra. Com esse dinheiro, o Brasil comprava armas na Alemanha, por exemplo, e não dos ingleses. A guerra do Paraguai foi uma guerra sem propósito porque podia ter sido evitada com diplomacia entre os dois lados. E o Brasil atuou vergonhosamente, em especial no fim da guerra. Os conflitos poderiam ter acabado em dezembro de 1866, quando os exércitos paraguaios já estavam virtualmente derrotados. Mas Dom Pedro II insistiu que queria a cabeça de Solano Lopez. E a guerra continuou até 1870, massacrando a população paraguaia na caça ao presidente. O então comandante do exército brasileiro no Paraguai, Duque de Caxias, abandonou seu posto logo no início de 1867, quando viu que a guerra tinha acabado, e o que se seguia era uma carnificina inútil. Foi substituído então pelo Conde D’Eu, genro de Dom Pedro II, que liderou as tropas até 1 de março de 1870, quando Solano Lopez foi morto e a guerra finalmente declarada terminada.

Essa é uma página vergonhosa da nossa história. A guerra do Paraguai deve ser conhecida pelo que realmente foi. Um conflito burro e um massacre cruel. A história até pode ser fabulada, mas não pode ser negligenciada. A gente precisa saber o que aconteceu e porquê aconteceu. Eu com certeza vou continuar acompanhando a novela da Globo com interesse. Ao invés de falar mal dela (ou querer colocar fogo, como uns querem fazer com certas estátuas), vou usar ao máximo essa novela pra trazer à tona conversas interessantes sobre a nossa verdadeira história.

HOJE EU RECOMENDO
Novela: Nos Tempos do Imperador
Em exibição atualmente na Globo e disponível na Globoplay.

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