Óperas com distanciamento

Como eu vou matar o cara? A dúvida chegou por telefone ao diretor Caetano Vilela. Ainda na Dinamarca, onde vive, a soprano Gabriella Pace preparava o papel da Mulher, na ópera O Marinheiro Pobre, de Darius Milhaud, que fariam juntos no Teatro São Pedro, em São Paulo. Mas, com os protocolos sanitários impedindo o contato entre os cantores sobre o palco, a pergunta surgiu. E era sincera. Como ela ia matar o cara?
Vilela assina a direção da dobradinha francesa que sobe ao palco hoje e amanhã do São Pedro, com as óperas Sócrates, de Erik Satie, e O Marinheiro Pobre. As apresentações terão a presença do público – no máximo 30% da capacidade do teatro – e, no domingo, a récita será transmitida ao vivo pela internet.
Serão as primeiras óperas no palco e com público este ano no Brasil. E não por acaso. Para as orquestras sinfônicas, a solução para lidar com a pandemia é manter o distanciamento no palco, ter os músicos de máscara e, no caso dos instrumentos de sopro e de metais, mantê-los separados por placas de acrílico. No caso da ópera, porém, há outras complicações: os músicos normalmente ficam no fosso, onde o distanciamento é mais complicado; os cantores precisam atuar sem máscaras – e não podem ficar parados sobre o palco.
“Os cantores precisam estar sempre a três metros uns dos outros, e a cinco metros da orquestra, por conta dos aerossóis. Não podem trocar objetos. Além disso, você precisa calcular direitinho por onde um cantor entra no palco, por onde ele sai, para que não haja aglomeração nas coxias. E não podemos esquecer que cada cantor tem de cuidar de sua própria maquiagem, de seu figurino, para evitar ao máximo o contato entre pessoas durante a produção”, diz o diretor. “As duas óperas são curtas, com cerca de meia hora de duração, mas deu mais trabalho que montar um título de três horas. Mas tudo isso é necessário neste momento, não há como ser diferente. E o desafio é pensar maneiras de casar o protocolo sanitário com a motivação cênica. É algo que dá trabalho.”
A escolha de Sócrates e O Marinheiro para abrir a temporada lírica do São Pedro não se deu por acaso. Parece consensual que, ao menos enquanto não houver uma porcentagem alta de pessoas vacinadas, montar títulos do chamado repertório tradicional, com horas de duração, vários solistas, coros com dezenas de pessoas, é improvável – ou mesmo impossível. Manter a ópera no palco, portanto, exige imaginação já na escolha do repertório, com obras menores e um olhar também para peças contemporâneas. Em junho, por exemplo, o São Pedro vai encenar outra dobradinha, agora russa, com Renard, de Stravinsky, e Mozart e Salieri, de Rimsky-Korsakov, também peças curtas, e que exigem menos cantores sobre o palco.
Visões diferentes
Sócrates foi escrita por Satie em 1918 e recupera a figura do filósofo a partir de trechos de textos de Platão, culminando com a cena da morte do pensador; já O Marinheiro Pobre, com libreto do poeta Jean Cocteau, subiu ao palco pela primeira vez em 1925, com um enredo sobre uma mulher que aguarda o retorno do marido e, sem saber, acaba levando sua própria história a um destino trágico (é o máximo que dá para dizer sem spoilers).
Os dois compositores fizeram parte de um momento de renovação da música francesa no início do século 20. E oferecem olhares diferentes sobre o que é a ópera. “Satie chamou Sócrates de drama sinfônico em três partes com voz. Milhaud falava de lamento em três atos. Por aí percebemos que os dois autores estão propondo novas formas de expressão, de lidar com o gênero, com essa proposta essencial da mistura de teatro com música”, afirma o maestro Gabriel Rhein-Schirato, que assina a direção musical da dobradinha, na qual vão atuar o barítono Vinicius Atique, a soprano Gabriella Pace, o tenor Paulo Mandarino, o baixo Eduardo Janho-Abumrad e o contratenor Victor Lucas Bento.
Mas as semelhanças param por aí. Para Rhein-Schirato, os dois compositores criam atmosferas musicais bastante distintas. “Satie escreve uma música estática, remete a um clima de antiguidade, o que tem a ver com a história que ele está narrando. O canto recorre ao falado, ao recitativo”, explica. “No caso da obra de Milhaud, a música fica entre o irônico e o trágico. E a música, por isso mesmo, deixa tudo distorcido, não crava o sentimento, a atmosfera emocional da situação.”
Vilela não vê, entre as duas óperas, uma união temática. Mesmo do ponto de vista da ação, há diferenças notáveis: Sócrates, ele diz, tem um caráter estático, enquanto há muito mais movimento na ópera de Milhaud. “Quando montei O Homem do Crocodilo e Édipo Rei, no próprio São Pedro, ainda que as óperas fossem diferentes, havia a questão da psicanálise que permitia um diálogo entre elas. Aqui, não era o caso. Pensei, então, em uma unidade cênica, utilizando um tule que separa o palco da plateia.” A luz ganha importância fundamental na montagem. “Em Sócrates, ela é mais sóbria, densa, é como se os cantores estivessem no espaço. Já no Marinheiro, pude trabalhar a luz de forma a permitir a observação do cenário e dos cantores.”
E, afinal, como Gabriella Pace vai matar o cara? “Vou trabalhar com o teatro de sombras para criar situações como essa”, explica o diretor. É uma forma, explica, de reimaginar a dinâmica em cena e de repensar as motivações clássicas dos personagens de ação e reação. “Espero que o público tenha generosidade para compreender que é algo novo que estamos tentando entender e fazer.”
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