Dívida e fome: duas perversidades que minam as forças

                A realidade humana é sempre uma aventura, nada está no seu devido lugar, cada um carrega a sua cruz diuturnamente, por mais que estejamos indo bem, sempre ao nosso redor estão acontecendo coisas imprevisíveis, impensadas, ontem, hoje e amanhã assim o será; nossas vulnerabilidades mesmo com tantas benesses é assustadora, uns mais, outros menos; deveríamos examinar a fundo nossas consciências, promoções para ajudar o próximo não deveriam ficar restritas ao final de cada ano, se desfazer daquilo que já não nos interessa mais (claro que isso é uma atitude louvável e necessária), mas não podemos ficar somente nessas ocasiões; nosso mundo está repleto de situações que requerem muita atenção, cuidado, compaixão e acima de tudo que não viremos o rosto para o lado como se tudo isso não fosse da nossa conta; duas situações cruéis movimentam o nosso Brasil.

                A primeira dura e triste realidade do povo brasileiro e também de outros povos é a dívida que cada um contrai uma hora ou outra, raro são aqueles que nunca se endividaram, até se diz em todo lugar que todo aquele que nasce, já nasce devendo algo, no Brasil existe a dívida do Estado, a dívida das empresas e a dívida comum de todo e qualquer brasileiro, basta acessarmos qualquer meio de comunicação e lá aparece essa palavra carregada de baixezas, vilanias e crimes. Uma dívida se contrai por inúmeros motivos, a propaganda para se endividar é muito grande, vai além de nossas forças para dizer não a ela, só mesmo com muito esforço e vontade é que conseguimos contorná-la, isso sim quando é possível. Endividar-se, assim como ganhar peso é fácil por demais, já para quitar a dívida e perder peso requer-se uma completa reeducação mental, isso leva muito tempo, exige um regime.

                Especificamente aqui no Brasil, a dívida corrói grandes e pequenos, o atual sistema financeiro mundial baseia-se também na dívida, principalmente na dívida que os seres humanos comuns contraem, uma bola de neve que nos últimos anos só aumentou, gerando instabilidade, empobrecimento, precariedade e muitas vezes uma perda de sentido da vida, saber que ao acordar pela manhã uma pessoa vai trabalhar apenas e tão somente para ganhar e pagar o que deve, é algo assustador, preocupante e também degradante. O atual estilo de vida “moderno” exige um esforço de quem entra nesse mundo, em outras palavras, se alguém quer possuir algo, na maioria das vezes deve se endividar e mais: nosso mundo é regido pela máxima: aqui tudo tem um preço, mas absolutamente nada tem valor; dívida sempre as teremos, o atual estágio humano nesse campo requer muita responsabilidade.

                A segunda realidade brasileira desumana e vergonhosa é a questão da fome; dívida e fome caminham juntas, de mãos dadas, uma união macabra que já vem de longa data, tristemente o Brasil, uma país que se orgulha de produzir milhões de toneladas de alimentos todos os anos e que vende quase toda essa produção para o exterior, deixa milhares de brasileiros passando fome, muitos revirando latas de lixo, caso emblemático e repugnante é o caso de nossas crianças irem para a escola porque é somente nesse local que poderão comer; dizer que nesse país não se passa fome, é uma das maiores mentiras que já foram fabricadas, especialmente por pessoas totalmente descompromissadas com o real e sem um pingo de sensibilidade; Josué de Castro, que estudou, se preocupou e denunciou esse tema, precisa urgentemente ser recuperado por nós, no Brasil queremos vida e não morte.

                Josué de Castro (1930-1973), foi e continua sendo um dos maiores pensadores práticos da nossa nação em relação ao que diz respeito à fome no Brasil, um dos raros brasileiros que foi sim indicado quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz, um prêmio que com toda certeza não lhe caberia e nem mesmo estava à altura do ser que ele era. Castro anteviu como poucos, o beco sem saída que é ter em mente apenas o desenvolvimento pelo desenvolvimento, sem levar em conta todas as partes que formam o todo, o Estado que não se preocupa com o todo tende cedo ou tarde arcar com custos altíssimos em todos os setores e são justamente os mais vulneráveis que pagam essa conta proporcionada por aqueles que nunca tiveram nenhuma preocupação com o nosso querido Brasil; hoje mais do que nunca o fantasma da fome campeia de norte a sul, esse tema requer resolução já.

                Bioeticamente, dívida e fome são duas duras realidades que fazem parte do cotidiano de milhares de pessoas no Brasil atualmente, estão aí implicados diversos direitos humanos fundamentais, nossa bela Carta Magna de 1988 apenas reproduz palavras melífluas que quando confrontadas com a dura realidade, não se sustenta uma palavra da mesma. Hoje já se fala aqui no Brasil, o país onde aquilo que se planta tudo dá, em nutricídio, genocídio alimentar, insegurança alimentar, desertos alimentares. Sabemos perfeitamente, que tudo está ligado a tudo, a teia da vida é feita com tudo aquilo de bom e desprezível que se constrói dia após dia. Quando se tem pouca ou nenhuma vontade de resolver problemas gritantes em nosso quintal joga-se a culpa imediatamente na guerra, no ser invisível, na crise ambiental e climática, no sistema financeiro que rege o mundo atualmente; de tão informatizados que estamos, acabamos nos desinformando deliberadamente do que o outro tem necessidade; o século XXI nos brindou com esse luxo.

Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, Mestre em Bioética e Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR.

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