Nossas ilusões têm sido facas de muitos gumes

Rosel Antonio Beraldo e Anor Sganzerla*

Não é nada difícil perceber que no nosso mundo atual, no qual estamos imersos, muitas peças encontram-se soltas, não há uma preocupação de ajustá-las, ao contrário, o que notamos é que os principais atores envolvidos torcem pelo quanto pior melhor, um verdadeiro escândalo em se tratando da sobrevivência humana e extra-humana, impera a era dos silêncios desumanizantes, silêncios esses que promovem o culto ao terror, silêncios que idolatram a guerra, silêncios que riem por dentro devido aos tantos esforços para se construir a paz, um mundo quase que inteiramente despreocupado com a questão climática e todos os seus derivativos; a bússola que antes norteava a vida para algum sentido mais profundo, está agora quebrada e seus construtores mais desorientados do que nunca, mas esses silêncios e outros tantos, de vez em quando é quebrado por uma voz vinda de longe.

Uma dessas vozes dissonantes chama-se Serge Latouche, um economista francês entre nós que tem posto lenha na fogueira, quando o assunto é desenvolvimento, um ardoroso defensor de frearmos o nosso consumismo doentio, um feroz combatente daquilo que convencionalmente chamamos de razão instrumental, também defende que aspirar um desenvolvimento ilimitado é uma utopia, por isso diante da nossa situação existencial é que devemos moldar em termos novos a nossa razão de existir no mundo. O crescimento buscado a todo custo pelos países tem deixado atrás de cada um deles um rastro de inúmeras violências, assuntos esses que temos deixado demasiadamente esquecidos por pura conveniência, mas que ultimamente tem vindo à tona com muita força; crescer por crescer, só faz aumentar as dores de uma grande maioria e a felicidade de muito poucos.

Serge Latouche tem dado visibilidade ao programa de decrescimento, fundamentado em muitos outros autores como Ivan Illich, José Bove, Nicholas Georgescu Roegen; usar a palavra decrescimento hoje é justamente para causar impacto, um forte estremecimento de tudo aquilo que foi se solidificando como única alternativa para o mundo e o que aí está já foi posto em xeque há muito tempo. Hoje a cultura do descartável está em voga, isto é, comprar, usar por pequeno espaço de tempo, jogar fora, descartabilidade essa que tem provocado inúmeros desafios para o meio ambiente em geral, bem como a todos os seres humanos. O sistema no qual estamos embutidos, como diz o próprio Serge Latouche precisa sempre estar pedalando, ele não pode parar para descansar, não pode perder tempo com as estradas esburacadas, deve seguir sempre num trajeto livre de ondulações.

Decrescer para então se viver melhor em todos os níveis, encontrar assim novas formas de convivência com o outro, com o ambiente, com a vida em geral, até agora as prioridades exclusivamente humanas estão voltadas única e exclusivamente para o produto interno bruto, que em suas entrelinhas deixa muito a desejar, um engano que teimamos rotineiramente em aceitar como válido. O decrescimento quando olhado bem de perto pela lente da verdade, é uma profunda reviravolta em nossos estilos de vida, ele abala as nossas frágeis crenças, ele enterra o tão bafejado mercado, esse ente que nunca conseguiu colocar os países numa rota comum, ao contrário foi o grande instrumento para catástrofes econômicas, guerras sangrentas, esmagamento de tantos povos, criador de artifícios para manter os países numa eterna dependência, a mercantilização global de todas as vidas.

O programa de um decrescimento feliz para todos (nunca entender essa palavra com o não crescimento, crescimento zero), é toda uma mudança de paradigmas sociais hoje extensamente firmados, tal reviravolta inclui a transsformação até nos seus mais recônditos fundamentos existenciais, tal impacto ancora-se nos chamados oito Rs de Latouche, quais sejam: “revalorizar”, “reconceitualizar”, “reestruturar”, “redistribuir”, “relocalizar”, “reduzir”, “reutilizar”, “reciclar”. Com o tempo podemos acrescentar outras palavras tais como: reconstruir, reformular, repatriar, retificar, recombinar, reviver, recriar, recomendar. Cada palavra dessas tem uma importância única hoje, são como que a busca por aquilo que tínhamos como sustentação da vida em outra época e que agora estão à mercê de outras forças perigosas que estão e ainda podem desestabilizar ainda mais a vida no seu conjunto.

Bioeticamente, a sociedade industrializada atual não está abalada apenas e tão somente pelo programa decrescentista de Serge Latouche, eis que esse programa está em contradição profunda com todo o atual sistema antivida que nos ronda faz tempo, o sistema “anti” que se propagou por todas as partes, esse sim é aquilo que mais deveríamos temer, esses movimentos “anti” é que deveríamos antes de tudo questionar firmemente, aquelas obsessões que só nos fazem temer pelo amanhã (pensemos nas guerras conhecidas e desconhecidas que hoje são travadas, os experimentos escusos que acontecem nos mais longínquos laboratórios, os drones assassinos que vitimam tanta gentes, a fome deliberadamente aplaudida pelos senhores da guerra e muito mais). Sim o decrescimento é um programa assustador, pois ele ataca frontalmente todos os instrumentos de morte que aí estão, o decrescimento se recusa a compactuar com a destruição em massa da natureza, o decrescimento mostra que a economia é apenas uma área da vida e jamais aquela única.

*Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, Mestre em Bioética, Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR.

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