O ideal está onde já não ocorre nada

Rosel Antonio Beraldo e Anor Sganzerla

Hoje quase não ouvimos falar dela, praticamente ninguém a conhece, poucos são aqueles que tomam coragem e a abrem para ler, mas todos sabem que ela existe em algum lugar por aí, a perfeita precarização, misturada ainda com boas doses de descaso e desconfiança por grande parte da população, alguns gostam de citá-la aos berros, sem no entanto abrir os olhos, as mentes e os corações dos ouvintes, por outras palavras, produzindo assim um efeito prático próximo da nulidade. Ela nos apresenta o ideal máximo, a perfeição de como deveria ser o Estado e suas instituições, mas entre o ideal e a perfeição há o abismo da condição humana que nela se faz presente; por estar no tempo e espaço limitado ela sofre todo tipo de pressão, as alegrias e as tristezas, a esperança por dias melhores; bem ou mal ela é um norte a nosso dispor, sem ela já estaríamos no caos eterno.

Nossa ilustre desconhecida chama-se Constituição, o Brasil já teve algumas ao longo da história, sete no total: a primeira vem de 1824, a segunda em 1891, a terceira em 1934, seguida rapidamente pela de 1937 e 1946, chegando a sua sexta edição em 1967 e a atual, a qual foi colocada à disposição dos seus cidadãos em 05 de outubro de 1988. As constituições brasileiras em praticamente seus duzentos anos de existência, percebe-se que são volúveis, não tem bases sólidas, vão e voltam ao sabor do vento, a de hoje possui um pano de fundo definido que quando analisado em conjunto com a reviravolta mundial das últimas décadas ela mais se parece uma máquina fria e sem alma, do que um remédio colocado para servir as pessoas em suas diversas dimensões; a atual Constituição do Brasil defende demais certos temas, enquanto outros ela abre brechas para que desapareçam.

Quem nunca se deparou com a Constituição Brasileira, saiba que ela teoricamente coloca-se ao lado do povo, contém duzentos e cinquenta artigos, dispostos em nove títulos que por sua vez subdividem-se em fundamentos que dão sustentação à República Federativa do Brasil, caminha-se então na direção dos direitos e deveres a nível singular e coletivo bem como dos direitos sociais, nacionalidade, direitos políticos e reserva parte para os partidos políticos. Merece destaque a função da União, Estados, Distrito Federal e municípios, bem como a administração pública; logo a frente ela contempla o papel dos três poderes, atividade econômica, assim como políticas públicas de primeira ordem; seguridade social, educação, meio ambiente, esporte, família, crianças, adolescentes, idosos, os povos silvícolas, a ciência, a tecnologia também são temas abraçados por ela.

Nossa Constituição alinha-se ao sistema de governo chamado democracia, aquele que não é o melhor nem o pior deles, por outras vias, é apenas o mais adequado ao nosso sistema existencial, pois abrange ou tenta abranger a vida, a liberdade, a igualdade, a justiça, a equidade, o direito, a tolerância e a dignidade dos seus. Lutar por esses e outros temas é uma tarefa diária para cada brasileiro de hoje, se com a democracia já difícil manter-se em pé, imagine-se então sem ela, sem o mínimo necessário de amparo, pois os temas acima elencados estão ao nosso redor todos os dias, mesmo vivendo sob o teto democrático, cada um em particular, no seu íntimo sabe muito bem o quanto já sofreu por não ter sido respeitado nas suas coisas básicas; nosso querido Brasil ainda é uma criança em termos constitucionais, muito ainda é preciso para crescer, a estrada é longa e sinuosa.

Nos últimos tempos vem crescendo uma onda contrária à democracia, bem como com os valores defendidos pela constituição em diversos segmentos da sociedade, ao longo do tempo tanto a democracia, quanto a constituição vem sendo cooptadas por forças contrárias aos seus ideais, alguns pedem reformas urgentes e profundas, outros indo mais longe querem a sua total supressão, colocando em seu lugar apenas aquilo que melhor lhes convém. Uma face violenta que ganha corpo e espaço no pensamento atual, ou seja, que os estorvos, os empecilhos, tudo aquilo que diga respeito ao social, ao outro, a melhora de vida seja de uma vez por todas tiradas de circulação, não é surpresa alguma os atuais discursos inflamados de ódio e perseguição, uma pretensa supremacia de valores acima de todas as outras; uma democracia assim não pode ter um futuro brilhante nem glorioso.

Bioeticamente, a Constituição quanto a democracia são elementos importantes para uma boa convivência entre os diferentes que aí estão, no Brasil tanto uma como a outra estão mergulhadas em situações altamente complexas, muito do que ocorre hoje tem nossa parcela de responsabilidade seja ela positiva ou negativa, a grande maioria defende uma e outra, mas nas entrelinhas da existência falsificada, vive-se como se ambas não existissem; hoje é comum cada um ter a sua constituição, o seu sistema de governo, a sua ideia de povo e quem deve viver ou não. Não existirá hoje nem amanhã um sistema puro, sem intervenções externas que traga uma solução mágica para todos os males da sociedade, sucessivamente temos perdido oportunidades únicas para melhorarmos como país, sociedade, repetidamente temos cometidos erros como nossos pais já faziam antes de nós; não se alienar, cultivar sempre a sobriedade, sentir-se parte do todo, ter em mente de que o que fazemos afeta tudo a nossa volta, eis a maior de todas as lutas que cada um trava.

Rosel Antonio Beraldo, mora em Verê-PR, é Mestre em Bioética, Especialista em Filosofia pela PUC-PR; Anor Sganzerla, de Curitiba-PR, é Doutor e Mestre em Filosofia, é professor titular de Bioética na PUCPR

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